sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

escreverei à meia noite do poema



escreverei à meia noite do poema, 
onde se desfazem as pedras das calçadas
e os teus passos.


escolheste seguir as pedras de ontem,
e os caminhos levantaram o pó 
dos teus passos.

escreverei à meia noite do poema,
onde o vento desfez a noite, ela própria
uma ave assustada ante a imensidão
do desejo.

morrem os corpos na espera,
enquanto a meia noite do poema se declina
na cor das cerejas.

é na confluência dos dedos
que se desocultam as noites dos corpos,
entidades desejantes, meia noite das vidas
nuas, encontro sobre o leito,
ventos-sul do peito,
quando a meia noite do poema
se escreve nas peles.

Susana Duarte



quarta-feira, 28 de dezembro de 2016



nascerão, um dia, aves, nas
margens serenas dos lábios.

por agora, nascem sorrisos

Susana Duarte

revejo as imagens dos dias de antes



encontro-te em todos os recantos 
das uvas, e em todas as luas 
do meu corpo. revejo as imagens
dos dias de antes, e as fotos 
traduzem o indizível: a vida consumida 
em poucos momentos, e as velas 
frutadas do meu peito. encontro-te 
em todos os lugares noturnos,
onde as mãos conduziram o voo 
das quimeras, e as asas pernoitaram 
onde os braços perderam as plúmulas
e as dores. encontro-te, enfim, às portas
das ruínas onde romanos guerreiros 
ergueram lutas decadentes, 
como a paixão que me traz
esquecida de mim. encontro-te onde sou,
e onde não serei, nunca, o que desejei,
se tu, por mim, não dotares os braços de mar,


afundando-me, assim, nas areias 
e nas algas
de onde não mais consegui sair.

Susana Duarte

segunda-feira, 26 de dezembro de 2016





o leve desmaio
existe onde grito:
nos rios sem margens.

Susana Duarte

em nenhuma rocha



em nenhuma rocha

inscreverei o nome

que as ondas gritam


Susana Duarte



barco



por entre brumas,

há um barco navegado

pelo teu nome


Susana Duarte




esperar



esperar por ti:

navegar ondas de nada


sob o céu azul


Susana Duarte


terça-feira, 20 de dezembro de 2016

beijo o  vazio,
a fria ausência:
trago poemas. 

Susana Duarte


soltam-se, das aves, as plúmulas insubmissas

soltam-se, das aves, as plúmulas 

insubmissas 
que descreveram margens 
de rios outrora 
ocultos.
desfazem-se nas madrugadas
transparentes,
sonoras como os ecos
de todas as ausências 
com que me escreves 
nos ossos,
doridos e insubmissos como as plúmulas,
ocidente de todos os desejos.
soltam-se, e desfazem-se,
as plantas ocultas do voo das aves.



lá, onde o ocidente se atreve
a circunscrever oceanos,
todas as ondas não bastam

para conter a fúria 
do voo.

Susana Duarte



terça-feira, 13 de dezembro de 2016

os dedos percorrem sílabas



os dedos percorrem sílabas 
onde o verbo, exilado,
anuncia o tempo

e o tempo, silente,
revê nervuras
e as mãos.

são folhas de romã, os dias,
e palavras perdidas 
onde o tempo se esgota.

nunca mais os dias de verão 
serão as searas douradas de antigamente.
o restolhar das folhas,
e a palavra

decadente
perdem os sentidos,
onde o verbo descreve as curvas
e a idade amontoa frases 
e ilumina memórias.

Susana Duarte


sábado, 3 de dezembro de 2016

o mundo é um lugar longe,
onde as mulheres são feiticeiras
e os poetas, a alma ferida

das brumas.

o mundo é um lugar longe,
tão longe quanto as lágrimas e o medo,
tão fundo quanto as lágrimas e o medo

de amar.

amar é um lugar longe,
onde as mulheres são aves que voam
um voo estranho de derivas

anteriores.

a dor é um lugar solitário,
tão longe como os poetas.

Susana Duarte


Tu sei fatto di tempo, di incessante
Tempo. Sei ogni solitario istante.

Jorge Luis Borges


quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

quando chegares, não acendas a luz:
ilumina-me com o futuro liquefeito dos teus dedos
e olha-me, com a vertente solar
dos teus olhos.

quando chegares, avisa as aves:
soletra cada uma das plúmulas com que desenhaste
as ausências, essas, que fizeram de ti
o sonho apátrida
das noites.

ilumina-me, então, com o voo abrupto
dos desejos sobre os lábios;
com a sombra ambígua
das manhãs

e com o eco vago das quimeras.

quando chegares, não acendas senão o peito,
e olha em redor das mágoas:
saberás que as noites
apátridas

têm recantos onde as aves
se iluminam; onde as plúmulas desenham círculos
na madrugada, e as mulheres se entregam às brumas.

talvez saibas, então, qual dos caminhos
trilhar. no voo abrupto das aves
sem nome.

Susana Duarte


"We leave something of ourselves behind when we leave a place, we stay there, even though we go away. And there are things in us that we can find again only by going back there."

Pascal Mercier, "Night train to Lisbon"