quinta-feira, 29 de setembro de 2016

"Mas um dia vi-te num curto silêncio, e compreendi a partilha, e decidi renascer"

Manuel Cintra



segunda-feira, 26 de setembro de 2016

talvez o poema só nasça
depois de ter sido escrito na pele,
demorando-se sobre os cílios

e as curvas lentas dos braços
-depois de, neles, ter residido a aurora,
madrugada de sal.

se o poema nascer
depois de uma aurora de sal, talvez 
saibas, então, da ausência

dos homens,
e das vidas esgotadas
das flores azuis
que enchem prados anónimos.

o poema poderá nascer das raízes
onde, ocultas, se entranham 
as inverdades que, no íntimo,
repetimos aos olhos

e, depois, decalcamos nos poros
sedentos
de toda a pele,

onde queremos ver escritas
as palavras
húmidas e sedentas (talvez
as mais raras), da boca

onde, então, calamos 
toda a angústia.

Susana Duarte





saúda-me a tristeza, a partir das janelas de onde, antes, brilharam estrelas de vida, ante a visão de ti e das tuas carícias. saúda-me, e eu deixo. saúda-me a saudade, e eu deixo. saúda-me a vida que tive dentro, quando contigo sonhava. e eu deixo. saúdas-me tu, no abraço demorado que me deste e, todavia, me prometes. e eu deixo. saúda-me a tristeza, mas não te deixo partir. saúda-me a vida antes de mim própria. e eu deixo. saúdda-me o brilho dos teus olhos. e eu deixo. neles vivo. neles morro. e eu deixo que a vida me preencha de vida. e eu deixo que a vida me preencha de morte. e eu deixo. mas deixo sobretudo que o sonho não morra. deixo que me vivas. deixo que me habites cada movimento das pálpebras. deixo que me sonhes. deixo que tenhas saudades de mim. mesmo quando a tristeza me habita. mesmo quando a saudade me desespera. habitas-me. não sei ser sem ti.


Susana Duarte


domingo, 18 de setembro de 2016

“There is no Greater Agony… 
Than Bearing an untold Story inside You…” 

Maya Angelou (1928-2014)


quinta-feira, 8 de setembro de 2016

NÃO O SONHO



Talvez sejas a breve 
recordação de um sonho 
de que alguém (talvez tu) acordou 
(não o sonho, mas a recordação dele), 
um sonho parado de que restam 
apenas imagens desfeitas, pressentimentos. 
Também eu não me lembro, 
também eu estou preso nos meus sentidos 
sem poder sair. Se pudesses ouvir, 
aqui dentro, o barulho que fazem os meus sentidos, 
animais acossados e perdidos 
tacteando! Os meus sentidos expulsaram-me de mim, 
desamarraram-me de mim e agora 
só me lembro pelo lado de fora.



MANUEL ANTÓNIO PINA, in ATROPELAMENTO E FUGA (Ed. Asa, 2001)



sábado, 3 de setembro de 2016

"Nalgum lugar"



nalgum lugar em que eu nunca estive, alegremente além
de qualquer experiência, teus olhos têm o seu silêncio:
no teu gesto mais frágil há coisas que me encerram,
ou que eu não ouso tocar porque estão demasiado perto
*
teu mais ligeiro olhar facilmente me descerra
embora eu tenha me fechado como dedos, nalgum lugar
me abres sempre pétala por pétala como a Primavera abre
(tocando sutilmente, misteriosamente)a sua primeira rosa
*
ou se quiseres me ver fechado, eu e
minha vida nos fecharemos belamente, de repente,
assim como o coração desta flor imagina
a neve cuidadosamente descendo em toda a parte;
*
nada que eu possa perceber neste universo iguala
o poder de tua imensa fragilidade: cuja textura
compele-me com a cor de seus continentes,
restituindo a morte e o sempre cada vez que respira
*
(não sei dizer o que há em ti que fecha
e abre; só uma parte de mim compreende que a
voz dos teus olhos é mais profunda que todas as rosas)
ninguém, nem mesmo a chuva, tem mãos tão pequenas
.
[e. e. cummings: tradução de Augusto de Campos]


quinta-feira, 1 de setembro de 2016

UMA MULHER ESPERA POR MIM-WALT WHIMAN




Uma mulher espera por mim, ela tudo contém, nada falta,




No entanto, tudo ficou faltando se o sexo faltou, ou se o orvalho do varão certo estivesse faltando. 









O sexo contém tudo, corpos, almas,


Significados, experiências, purezas, delicadezas, resultados, promulgações,


Canções, mandamentos, saúde, orgulho, o mistério da maternidade, o leite seminal,


Todas as esperanças, benefícios, doações, todas as paixões, amores, belezas, deleites da terra,


Todos os governos, juízes, deuses seguiram pessoas da terra,


Estes estão contidos no sexo como partes de si mesmo e justificativas de si mesmo.










Sem pejo a mulher de quem eu gosto conhece e assegura a delícia do seu sexo,


Sem pejo a mulher de quem eu gosto conhece e assegura as suas.










Agora vou dispensar-me de mulheres frias,


Vou ficar com ela que espera por mim e com aquelas mulheres que são apaixonadas e me satisfazem,


Vejo que me compreendem e não me negam,


Vejo que são dignas de mim, serei o marido vigoroso de tais mulheres.










Elas não são em nada menos do que eu,


Têm a face curtida por sóis luzentes e o sopro dos ventos,


A sua carne possui a velha divina maleabilidade e energia,


Sabem como nadar, remar, cavalgar, lutar, atirar, correr, golpear, recuar, avançar, resistir, defenderem-se,


São irrevogáveis quanto a seus direitos – são calmas, claras, seguras de si próprias.










Trago-as para perto de mim, vocês mulheres,


Não posso deixá-las ir, faria bem a vocês,


Estou para vocês e vocês estão para mim, não apenas para o nosso bem, mas para o bem de outros,


Envoltos em vocês adormecem os maiores heróis e bardos,


Recusam-se a despertar ao toque de qualquer homem, a não ser eu.










Sou eu, mulheres, faço meu caminho,


Sou duro, amargo, grande, indissuadível, mas amo-as,


Eu não as faço sofrer além do necessário para vocês,


Eu verto a substância para encetar filhos e filhas aptos para estes EUA, pressiono com o músculo rude e lento,


Eu me abraço efetivamente, não escuto súplicas,


Não ouso me afastar até que deposite o que, há muito, estava acumulado dentro de mim.






Através de vocês faço escoar os reprimidos rios de mim mesmo,


Em vocês contenho mil lágrimas progressivas,


Sobre vocês eu enxerto os enxertos do mais amado de mim e da América,


Os pingos que destilo sobre vocês farão crescer moças impetuosas e atléticas, novos artistas, músicos e cantores,






As crianças que eu gerar sobre vocês hão de gerar crianças por sua vez,


Hei de exigir homens e mulheres perfeitos do meu consumir amoroso,


Espero que eles se interpenetrem com outros, como eu e vocês nos interpenetramos agora,


Vou contar os frutos das ejeções abundantes deles, assim como conto os frutos das ejeções abundantes que eu agora dou,


Vou aguardar as colheitas de amor, desde o nascimento, vida, morte, imortalidade, do que planto tão amorosamente agora.

 metade de mim é silêncio. onde o silêncio habita as margens das veias, habita igualmente o mar tempestuoso  dos meus pensamentos. metade de...