domingo, 29 de dezembro de 2019

Mágoa
(ouvindo «Corpse Bride, piano duet»)

acendeste mágoas                onde os seios descansam

amas como as metáforas          das romãs,   
e sabes ainda a noite,

e sabes a dia,        e sabes às manhãs ígneas
da abertura dos olhos                 e das nuvens brancas.
acendeste mágoas, e por isso, sabes aos dias
de antes,                 e ao esquecimento, depois.

sabes às dores do peito,          incendiado pela solidão  das noites,         onde as sacerdotisas nasciam,            fluxos de terra,         e de seiva, e de luz.                               sabes a tudo,
e sabes a mágoas        acesas          pelo fluxo 
                                                   da noite.

acendeste as águas do ventre,      que depois calaste                            amas como as rubras
manhãs do desejo,              e sabes às maçãs colhidas no arco da primavera;             

revejo-te,                   obelisco erigido em mim,               

                    culto das manhãs onde te espero.

Susana Duarte


terça-feira, 17 de dezembro de 2019


preciso do silêncio,
das aves

e da solidão nomeada
pelas sílabas
largas

do vôo por fazer.

preciso da sombra que nasce
da insuspeita asa
da árvore

que traduz o ar
e perpetua a vida.
preciso, enfim, da asa branca
das névoas quando o mar 
incendeia as arribas,

derruba os fósseis
e reencaminha o ímpeto de viver.

é sobre o totem vivo
da tua vontade que me ergo.

diz-me onde estás. 

Susana Duarte


quinta-feira, 12 de dezembro de 2019



a invenção das aves
nada ensinou sobre o desapego.

trouxe consigo a lucidez das águas,
a trégua entre a nascente e a foz.
nada disse sobre a vida anaeróbia
dos sobreviventes. nada disse
sobre a perda da voz. as aves são
entidades abstractas: nomeiam
as ilusões e apegam-se


às rochas erodidas, onde o vôo
é abismo, interdito, drama
e redenção.

Susana Duarte

quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

cabem todas as vozes
no peito ávido dos olhares
trilhados pelos caminhos longínquos
                                        e pelas ondas.

cabem todas as mágoas
nos olhares das aves, e todas as aves
nos olhares                      das mulheres.

no desassossego do voo,
existes tu, folha caída de uma árvore
sem raízes. existes onde as águas
desassossegam o mar líquido
do ventre, e as folhas
perenes agitam
                                              as sombras.

não existe nada, para além das aves,
e das ondas, e das sombras...
talvez existam                   as memórias,

as folhas caídas e
o que fomos ontem:.         um homem,

e uma mulher -         atraídos pelo vôo
das palavras que, por serem ditas,
soavam a                             eternidade.

Susana Duarte