domingo, 4 de agosto de 2024

Noite

 a noite das aves é segura:

    serena os vôos, 

      abranda os passos

e faz soar as águas onde sapos coaxam


e os minutos se escoam

   por entre os braços e o desejo de ficar.


a noite das aves é delicada:

    abraça o sonho antigo de ser,

       rege a partitura de passos novos

e define a caminhada dos cansaços


e das luas dos corpos. 


as noites são segredos e sussurros

     ensimesmados, onde olhares gritam 

memórias de dias a sós, 


        tão encantatórias quanto o pio 

   que se faz sentir nos braços nús, dançantes 

e próximos do abraço 


       e da nudez de ser noite:

 esta noite transparente e luminosa

como as águas que escorrem dos olhos

         e naufragam na pele das costas. 


Susana Duarte

sábado, 3 de agosto de 2024

 prometo-te um poema de silêncio

e navegação,


uma onda lenta na pele


a saudação leve 

do dedo sobre a boca


e a neve que se desfaz 

sobre as costas


 (outrora desabitadas).


Susana Duarte 🌻

sexta-feira, 19 de julho de 2024

 esperei por ti, 

       como quem  espera              por  um fantasma.


caminhei na noite 

como se as esquinas               me devolvessem 

                           o sorriso de outrora.


esperei pela tua chegada

   -não alcançando senão o dedo esticado

(por mim) a oriente.


não sabia onde moravam os beijos

prometidos, ou                    a sensação latente

da tua chegada.    contigo,  espero pelas mãos,

                                  (as tuas);


pelo toque das  palavras,


e pelos dias da mansidão             clara

                                     das quimeras.


espero        que tragas           contigo

                              a suavidade das maçãs rubras

do desenho dos corpos;


                    a metafísica das águas;


a iluminada crença

na paixão com que delimitas


                    os meus passos, 

                                me constróis as asas

                                          e  alimentas os beijos.


eis-nos a   desfazer

           os espectros        


                e a dar lugar ao vôo largo

                                 de todas as  chegadas.


Susana Duarte


Arte de Julia Margaret Cameron


domingo, 7 de julho de 2024

 já escrevi sede nos lábios,

      na procura da barca da aurora.

já escrevi rochas fendidas

        nas manhãs do corpo.


 

houve madrugadas cessadas

   sobre os ombros nús de noites sem noite.


escrevi sede sobre a pele rarefeita, 

decomposta

       de uma alma insaciável.


hoje, escrevo para ti, por sobre as letras

escritas na pele ávida 

da queda das águas sobre 

         o sal do corpo.


Susana Duarte 


 a palavra 

   és tu, caminhante 

        destes meus passos.


convocas as tempestades 

      para amainar as minhas, 

         sol no meu corpo,

          vento sul na passagem pelos cabelos 


     intrincados 

          com que devoro

    

 o beijo.


o beijo é -as palavras todas-

    e todas as palavras me conduzem 

            a ti:


estás onde as noites terminam

         e as vozes acabam, silêncios 

feitos de luz nova e de auroras tingidas


   de um corpo -amante 

e da beleza invulgar das coisas raras,

onde eu sou eu, e tu és tu,

               todavia raros


        na confluência dos dedos.

Susana Duarte 

7/07/2024




sexta-feira, 28 de junho de 2024

 sinto falta dos teus braços,

onde navego momentos de um tempo 

                     

                             suspenso.


sei onde estás, braços salgados

da procura, e reflicto neles as águas cálidas 

de um ventre nú. és a manhã desassombrada


e o suave descanso dos ombros 

sobre a opressão dos dias. és a criação 

de uma aurora, desenhada a óleo 


sobre os meus olhos

              (onde escondes o sorriso)


eles próprios suspensos, farol e faroleiro 

de uma vontade afogada nos dias de ontem,

talvez de  todos os ontens. reencontro 


   os dias de verão onde suas temores.

              desaguo na foz de um rio novo, e rio.



  Susana Duarte 



 volto a ti como quem volta à raíz 

e segrega seiva adormecida

por onde os braços  

procuram 

afagos 


ou palavras

de amor e de glória,

escondendo-se sob vertentes

outrora úmbrias, agora solares, asas


soltas  da nossa vontade 

de ascender 

ao segredo,


à alquimia de transformar em luz

a antiga obscuridade,

parindo asas

desiguais


onde os olhos descansam.


Susana Duarte 




sábado, 22 de junho de 2024


 Rendição 


foi a flor do teu olhar que me trouxe 

o dia luminoso 

e a manhã do teu beijo.


foi a flor das tuas palavras,

e a sombra dos dias

que me iluminaram os lábios,

devolvendo as asas ao corpo


 no Penedo,


onde retirei as mãos das rochas

e sorri. foi a flor do teu olhar.


sabes dos teus e dos meus dias,

e sabes que a solidão é maior depois 

de enrubescer os lábios.


foi a flor do teu sorriso que me sorriu,

amando-me as trevas e a luz,

as montanhas e os vales


e os abraços outrora sonhados.

foste tu, e és tu, e sou eu


(mãos dadas no Penedo)

     a fazer capitular o medo.


Susana Duarte

21/06/2024



segunda-feira, 1 de abril de 2024

 há uma casa onde a infância foi

a ideia de um dia ser     obra imperfeita talvez

obra acabada             inconsciente dos futuros

ou dos filhos    ou dos gatos sobressaltados

e das dores paridas       em noites solitárias


na casa sobrevoada por memórias, vivem 

espectros            gestos antigos       objectos

obsoletos        almas grandiosas   ou meros 

sobreviventes aspirando o ar das ameixas e

       dos laranjais    e dos sorrisos de avós

tão antigos como as casas e os seus beirais

   chuvosos, resplandecentes e gélidos    onde

gatas antigas parem   gatos futuros  e o gelo

    da manhã pare as dores do mundo


     ou, apenas, as inomináveis: as dos vivos.


Susana Duarte



sábado, 23 de março de 2024

Silêncio

 





o silêncio é tão estranho 

quanto outra coisa qualquer,

e tão desabitado quanto a alma

das mulheres deixadas vivas pelo vento 


tempestuoso


das vontades antigas- as do alento

e da fé, da força e das asas

desabitadas de janelas 


quebradas


pela morte das memórias. 

o silêncio vive nas histórias

que guardo, secretas e risíveis, 

entre as páginas dos livros.


também tu, secreto e risível, 

habitas os dias de ontem,  os que semearam


silêncios

na pele-toda-com que me visto.


Susana Duarte

1o dia de Primavera

Noite

 a noite das aves é segura:     serena os vôos,        abranda os passos e faz soar as águas onde sapos coaxam e os minutos se escoam    por...