segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

 a invenção das aves 

nada ensinou sobre o desapego.


trouxe consigo a lucidez das águas,

a trégua entre a nascente e a foz. 


nada disse sobre a vida anaeróbia

dos sobreviventes.  


nada disse sobre a perda da voz. 


as aves são 

entidades abstractas: nomeiam

as ilusões e apegam-se


às rochas erodidas, onde o vôo


é abismo, interdito, drama


e redenção.


Susana Duarte

2019

sábado, 6 de novembro de 2021

 a impossibilidade de ser água


anuncia as mãos apartadas 

dos braços, antecipando 


madrugadas de raiva e suor.


eis as mãos onde as águas

despertam  lágrimas ocultas

que se prolongam, manhãs

de chuva que nos devolvem 


ao mar.


Susana Duarte




domingo, 24 de outubro de 2021


quero de ti um poema de osso
e de asas, de rémiges 
escritas nos dedos

e de navegação da pele
sobre as mágoas antigas.

do voo, nada digas:

sobrevoa as costas 
das memórias, e transforma 
o poema na escrita da carne.

Susana Duarte

sábado, 2 de outubro de 2021

Destino


 há um destino em cada palavra.


evidenciado pelas manhãs rubras

das vozes antigas,


encerra uma novena,

uma prece dirigida aos cadavres-exquis

que povoam a mente lúcida.


houvesse apenas desconhecimento,

e o riso sobressaltaria a noite.


há um destino em cada palavra,

e nenhuma me conduz a ti.



Susana Duarte


Susana Duarte




sexta-feira, 2 de abril de 2021

A aldeia

 a aldeia permanece-

      muda como dantes,

      e como dantes, cheia de vida

                  nas sombras verdes das ruas


antigas. são empedradas e duras,

      como as rugas antigas das vidas 

              que conheci, quando as luas por viver 


eram suaves e tantas.


a aldeia suaviza as memórias,

             antecedendo as perdas

        e guardando, nas pedras, os diálogos


das caminhadas, 

            e das dores,

                e da lembrança dos baloiços

                         no adro da igreja.


são antigos, os meus pés,

    como os salgueiros e as ruínas

outrora vivas, outrora albergue de risos


e de misérias, ambos parte dos sons

    com que se viviam as Páscoas


madrugadoras,

     os risos das crianças,

           o compasso dos milagres 


e a idade que não parecia existir.


talvez, afinal, eu saiba

   de onde sou. sou das ruas 

                    e das ameixoeiras,


da casa antiga e da fonte,

      dos cântaros e dos sabugueiros,

             dos jarros  em flor e da terra,


talvez tão finita como a aldeia,

                   e tão infinita como ela.


Susana Duarte

2/03/21


segunda-feira, 1 de março de 2021

 as flores nascidas

do teu rosto, semeiam

expectativas 


em olhos translúcidos


(os meus)


 

Susana Duarte





quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

 a tua voz ergueu-se 

do cinzento       dos dias chuvosos


(deixando-me              suspensa

                   nas horas).


suspensa pelas palavras 

                         que não digo,


tornei-me silêncio.


         sussurro o silêncio

                    que me percorre,


incapaz de traduzir


                           o teu nome.


Susana Duarte




terça-feira, 23 de fevereiro de 2021



a vida solta 
extingue as lágrimas

e a vaga sensação de futuro.
 
 

possam as flores renascer,
e as aves navegar olhos humanos,

e os olhos marejarão de expectativa
as noites onde, vazias, 
 
 

as janelas escutam fantasmas.

Susana Duarte

sábado, 6 de fevereiro de 2021

 o amor.


acontece nas horas cimeiras,

              antecipando os vôos 

                                     do     sangue.


inesperado como as águas

           que irrompem,       abruptas,   

                                    onde as geadas

 

ignoram a tardia floração do peito,


            o amor trespassa os cabelos

                                revolvidos

                                     por dedos ágeis.


              o amor. inesperado e inseguro

                          como uma ave lenta.


Susana Duarte


domingo, 31 de janeiro de 2021

digo-te adeus

 





digo-te adeus

antes que a estrada 

           desuna os braços


e me obscureça 

            os latidos,           os gritos      e os vôos.


digo o que sei:

não existe mais do que a voz 

        com que calo           o que pressinto.


a estrada lenta das árvores

onde o sabor do absinto            me desnudou,

será a mesma                           que te abraçará


no regresso ao norte.       


as mãos que levaste       contigo,         aladas

e inseguras,            etéreas,

                 sobrevoadas pelas linhas do sangue,


dir-te-ão da impossibilidade 

                     e da ausência.        digo-te adeus,


      onde os cruzamentos  das palavras 

                  não permitem a voz 

                  ou o balanço suave


         das águas inertes sobre os corpos.


Susana Duarte



sábado, 2 de janeiro de 2021





 roubo à chuva

o sol que me pertence:

a clandestinidade da rua

permanece indistinta,


à sombra das palavras 

negadas,


interditas,


ditas onde os terrenos

aguardam a chegada

do beijo.


roubo ao sol o calor

do vôo, onde aves soletram

manhãs de inverno


e separam as letras 

de cada rumo ao sul.


roubo, enfim, o nome

decalcado na terra,

onde sou norte e sou sul


e não sei para onde vou.


Susana Duarte