domingo, 23 de agosto de 2015

Excerto de "Praia" do livro "Pangeia", a lançar brevemente pela Alphabetum


(...)

breve foi o amor da ave pelo mar                  ( imensa concha onde o mundo verteu as lágrimas).
a água acolheu a ave na inclinação das ondas.            despojada das asas, entoei o canto da ave.


nessa praia breve, todos os mistérios do mundo. 






Susana Duarte

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Talvez



Talvez, um dia, escreva de novo um poema,


o poema uno,
o poema-pele.



Será o poema estranho:

quando as névoas se atrevem

a escrever letras indivisas,

tornam-se cúmplices das feiticeiras.


Talvez, um dia, volte a escrever

um poema.










Susana Duarte


quinta-feira, 13 de agosto de 2015



"O céu está vazio.
Há anos que amo este homem.
Um homem a quem ainda não dei nome.
Um homem que amo.
Um homem que me abandonará.
O resto, diante, atrás de mim, antes e depois de mim, é-me indiferente.
Amo-te."


Marguerite Duras




terça-feira, 11 de agosto de 2015

Poesia (ouvindo Bjork, “Pagan Poetry”, ao piano)

Poesia
(ouvindo Bjork, “Pagan Poetry”, ao piano)






nascesse das fragas, e não seria menos escarpada a poesia que de ti nasce.
nascesse das águas revoltas do oceano, não seria menos aquática, a poesia.

nasce, de ti, nasce das papilas da língua e dos cílios, e das mãos, e das noites
entregues à formação poética do amor que, em ti, ecoa. em ti, a noite; em ti, o dia.

de ti, a poesia latente no movimento das asas. de ti, as noites caídas sobre as águas.
de mim, apenas as rochas suspensas sobre a vontade. de mim, as asas feitas noite. e as coxas
onde cai a água, e as pernas juntas sob o sol, e a poesia, lago onde te perdes e nasces
das fragas, e das águas, e de ti, e do dia.



Susana Duarte
"Pangeia" - a lançar em Outubro pela Alphabetum Edições Literárias




domingo, 9 de agosto de 2015

sábado, 8 de agosto de 2015

"Onde o Mar Falta"




Entreabertas as pernas, e pousada
de leve, sobre os ombros, a cabeça,
parecias às vezes, derramada
no fundo, mais espessa.

E eras líquida: vias, através
de tua própria sombra transparente
a luminosidade dos teus pés,
alados. Porque ausente.

Jamais dizias nada. Sempre tinhas
entre os lábios, a voz silenciosa
dos que voltam. Onda após onda, vinhas
(e vens) misteriosa.

Desde a profundidade, do mar. Brusco
nas suas reacções, onde o mar falta
sob as ondas, aí, aí te busco —
e és, como as ondas, alta.

Quando olho o horizonte: quando tudo
se dissolve em si mesmo e, onda após
onda, me calo. Vejo, e estou mudo.
O mar na tua voz.

Porque vias o mar (tinhas o mar
no olhar) fechando os olhos. E defronte
o víamos surgir. Bastava olhar,
que tudo era horizonte.

Octávio Mora, in 'Terra Imóvel'

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Por todas as madrugadas.



retive, entre os dedos, as conchas devassadas
pela natureza impetuosa da língua, e as flores,
e os grãos de areia laminados pelas tuas mãos.

guardei tudo onde a água não me alcança,
e os abraços ficam por dar. é nesse lugar triste,
de faltas e de dores, que guardei as conchas,


e as flores, e os grãos de areia, e as tuas, 
e as minhas mãos. as que perdeste, no lugar
misterioso onde caem os abraços e se perdem

beijos. as circunstâncias dos beijos, são as mesmas
das abelhas: correriam livres onde as flores 
não polinizadas esperassem por novas auroras.

nessas auroras, faltam, todavia, as palavras.
habituar-me-ei a todas as ausências, mas nunca
às ausências das palavras, as que se desgastam

sob os dedos marinheiros que escondes na areia.
se souberes onde as perdeste, ou onde o medo
perdura por entre as conchas fundas do ser, diz

o meu nome, e abraça-o, e traz a mim a língua,
a que devora os grãos de areia que sou, e as mãos
entrelaçadas, devassadas também elas pela urgência

do abraço. nesse momento, deixa que a língua
me trespasse, e faça renascer sob o corpo-mar
das arribas. diz o meu nome. e tira-me de onde

as palavras insistem em não ser ditas, e o amor,
esse vagabundo, teima em perder os dedos estranhos
das navegações dos olhos. e fica. ousa as palavras.

ousa as palavras. e deixa que as vertentes solares
trespassem as noites todas, e incendeiem as litanias
das ondas, e tudo mude de lugar: eu, tu, e as conchas,

e os grãos de areia, e as flores polinizadas, e os mares,
e os abraços teimosamente navegados pelas ausências
das palavras que insisto em te pedir, ou em roubar

às mãos que escondes na areia, e me deste por um breve,
redondo, insistente e profundo momento de esquecimento:
todo o esquecimento é feito de palavras, tal como aquelas

que te peço, ainda, tresmalhadas das ondas, e das nuvens,
e dos solares dias anteriores ao mosto, onde és tudo 
o que quero reter nos olhos, e nos recantos onde as mãos,

esquecidas de todas as convenções, e de todas as expiações,
pousaram resolutas, anímicas, totémicas, talvez nuas
de tudo o que dissemos antes e, por isso, vivas.

Susana Duarte

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quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Ana Hatherly: 8 de maio de 1929-5 de agosto de 2015.

O que é preciso é gente
gente com dente
gente que tenha dente
que mostre o dente

Gente que não seja decente
nem docente
nem docemente
nem delicodocemente

Gente com mente
com sã mente
que sinta que não mente
que sinta o dente são e a mente

Gente que enterre o dente
que fira de unha e dente
e mostre o dente potente
ao prepotente

O que é preciso é gente
que atire fora com essa gente

Essa gente dominada por essa gente
não sente como a gente
não quer
ser dominada por gente

NENHUMA!

A gente
só é dominada por essa gente
quando não sabe que é gente

Ana Hatherly, in "Um Calculador de Improbabilidades"

Mar Português.

Foto: Susana Duarte


Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

Fernando Pessoa Pessoa, F. Mensagem. Poema X Mar Português. Edições Ática: Lisboa. 1959.

domingo, 2 de agosto de 2015