terça-feira, 27 de novembro de 2018



Findas as rosas e desfolhados os dias
restou este remanso onde a boca se alimenta
da saliva e das vogais inacabadas

e onde nenhum verso pode completar a ode
porque as parcas nos tecem a vida e a morte.

Hoje não é (ainda) o dia em que a casa seja rocha
e os versos sejam luz

hoje é o dia em que o fruto é miraculado
e as preces não dizem adeus
às noites que vieram de longe.

Tão longe…

Custodia Pereira

segunda-feira, 26 de novembro de 2018

há mistérios no dorso
proeminente
das aves surdas,

e sacrilégios em cada plúmula.

das nuvens às árvores, 
as aves perdem os dias
e os dias desencontram-se 

das quimeras.

há, nas aves negras, as toadas
silenciadas pelo ritmo
das vozes.

em cada voz, um vôo perdido

em cada plúmula, um corpo
desencontrado de si

em cada ave, um amor suposto,
e em cada um, um futuro desaparecido
nas brumas

Susana Duarte


quinta-feira, 22 de novembro de 2018

Dandélio, Coimbra

https://goo.gl/maps/6LuNRco3VPM2





  • escreverei à meia noite do poema, 
    onde se desfazem as pedras das calçadas
    e os teus passos.

    escolheste seguir as pedras de ontem,
    e os caminhos levantaram o pó 
    dos teus passos.

    escreverei à meia noite do poema,
    onde o vento desfez a noite, ela própria
    uma ave assustada ante a imensidão
    do desejo.

    morrem os corpos na espera,
    enquanto a meia noite do poema se declina
    na cor das cerejas.

    é na confluência dos dedos
    que se desocultam as noites dos corpos,
    entidades desejantes, meia noite das vidas
    nuas, encontro sobre o leito,
    ventos-sul do peito,
    quando a meia noite do poema
    se escreve nas peles.

    Susana Duarte

quinta-feira, 15 de novembro de 2018



eras tu, a árvore da minha vontade
de voar para onde as aves
falam de naufrágios 
e de arribas 
escondidas


pela erosão fácil da alma.

perdi os dias a falar com as ondas,


e as noites à procura do ar
lento que as aves
soletram,

apátridas

como as almas que deambulam
ao largo, onde o sargaço se move
e a praia é um lugar longe.

longe de ti, longe de mim 
e do mundo das pessoas,
procurei ainda a sombra
azul das águas

entristecidas

pelas marés estranhas do ser.

não soube ir além da foz e, todavia,
eis o sorriso fácil da árvore
da vida, nascido
dos teus olhos
e derramado
como luz sobre a maré

onde, outrora, me uni 
às arribas fósseis da vontade
de navegar,

para, em ti, ser soluço,
voz de ave,

maré indissolúvel.

Susana Duarte


sábado, 3 de novembro de 2018

quando vieres, traz os dedos
 da aurora,

e amanhece nas dobras cegas 
do pescoço
onde, ontem, navegaste 
os trevos 
do dia longo
[anterior às mágoas]

florescidos dos teus dedos,
esquecidos dos segredos

[onde as horas não chegam
e os teus olhos me faltam]

Susana Duarte
2017