sábado, 29 de outubro de 2016

“Now I know what a ghost is. Unfinished business, that's what.”
― Salman Rushdie, The Satanic Verses



-Foram dez, os lugares do amor…-pensou ela.
A estação dos comboios foi, de todos, o primeiro e, de todos, o derradeiro. As portas do ocidente abriram-se-lhe,  olhos postos no sorriso que anteviu e no encontro que –temia- poderia nunca acontecer. O encontro, afinal, aconteceu, e teceu-se com as mãos que anteciparam os beijos, as madrugadas claras, e o suor dos corpos reencontrados.
Refém de si mesmo, e dos cabelos negros que abraçava, ele libertava anos de procura, ao mesmo tempo que, dos seus olhos, saíam névoas preocupadas: tudo mudara e, no entanto, tudo tinha, ainda, que mudar.
- Este é o segundo dos lugares do amor…-pensava ele, mãos dadas sobre o leito, sorrisos postos no futuro que antevia.
A vida acontece inesperadamente. Confronta. Exige respostas e capacidade de ajustamento. Acontece. Ao acontecer, traz consigo o cheiro de todas as infâncias, o eco de todos os receios, e a inevitabilidade das decisões. Ele intui que, a partir dali, outros serão os lugares do amor. E sabe que, a partir daquele encontro, tudo mudou e, no entanto, tudo terá, ainda, que mudar.
Os dias sucedem-se, e os lugares do amor são vividos com a respiração ofegante de quem quer viver a vida toda nos dias que lhe são dados, um de cada vez, hora a hora, segundo a segundo. E, inevitavelmente, acabam.
O rio, navegante incansável, escorre ali mesmo, entre as margens que o delimitam e são, simultaneamente, todas as suas possibilidades de progresso e caminho. O rio foi o nono lugar do amor. Sobre ele, fluíram marés originadas por aquele encontro. O mundo tinha mudado a lógica das coisas. A inevitabilidade do encontro, também mudara tudo o que conheciam. Os corpos transpiraram marés, por sobre o fluir do rio, e por sobre o fluir daquelas duas vidas.
-Este deveria ser, apenas, um dos lugares do amor-pensavam eles-, mas o derradeiro será aquele que apartará os corpos.
Se sonharam, nessa noite, sonharam com as flores colhidas, após as sementes deixadas na terra, numa sucessão de estações que viveriam juntos. Sonharam, talvez, com as noites, e os dias, e o devir. Sonharam, talvez, que tudo o que ainda tinha que mudar, já estivesse mudado, portas abertas, a ocidente, para todos os lugares do amor. Sonhar os luares do amor era a única forma de não ficar só. a solidão da separação, após ter tocado o amor, é escura, e fria, e dolorosa, e inevitável e, aparentemente, eterna. Escrever a vida, trilhando caminhos sem dar as mãos, depois de conhecer os lugares do amor, é aprender a caminhar numa noite longa e fria. Acordar, pois, é antever a ferida aberta no íntimo do corpo, e descobrir o frio na aparente invencibilidade com que se acorda em cada dia.
Ele, e a metade de si, separar-se-ão naquele que foi o primeiro-e será o derradeiro-lugar do amor, aquele onde se olharam nos olhos e deixaram as lágrimas soltar a noite de chuva que viveram, dias antes, os dois, de mão dada a enfrentar as intempéries-todas-, que acreditaram poder vencer.
Ficarão ligados, para sempre,  aos dez lugares do amor. Abraçar-se-ão em cada sonho, em cada recanto de cada palavra. Saberão da inevitabilidade do reencontro. Até lá, reaprenderão a vida, e a morte, e a saudade, e o amor, e a ternura, e a ausência, em cada primavera antecipada, em cada estação que, todavia, os separar ainda.
- O décimo-primeiro lugar do amor, terá que ser aquele onde perdemos as mãos, porque o outro as levou consigo- pensou ela.
Ao mesmo tempo, ele pensava que as mãos que deixou, voltarão a si, no momento em que devolver aquelas que, consigo, em si, levou. Porque sabe, desde já, que se encontrarão no abraço, aquele que será dado no décimo-primeiro, talvez último,  lugar do amor.

Susana Duarte


quinta-feira, 27 de outubro de 2016



"O céu está vazio.
Há anos que amo este homem.
Um homem a quem ainda não dei nome.
Um homem que amo.
Um homem que me abandonará.
O resto, diante, atrás de mim, antes e depois de mim, é-me indiferente.
Amo-te."


Marguerite Duras



domingo, 23 de outubro de 2016

Antítese

Antítese
(ouvindo Aesthesys, “Dreams are only real as long as they last”)










sou a antítese dos mares.                                            escondo-me das flores onde a luz não chega,
e da luz,  onde as flores desmaiam ante o bater de asas das borboletas azuis.           escondo-me
onde as luas me navegam.                              sou um exoplaneta frutado de luas sonoras, e a veia
onde os teus passos criaram a sede.          sou a antítese de mim  mesma, e o contrário de tudo.

persigo  as ondas onde os mares se afundam em areias prístinas,                e acendo os grânulos
de silício das praias com os passos dados em auroras distantes.                     nessas auroras vives
tu, ser flávio das noites antigas.                          és a antítese de mim, e aquele que me completa.



interrogas-me onde a estranheza se instala.    escondes-me de mim onde me perdes e me tens.


é  por ti que sou a antítese do ventre,    e a demora das manhãs  frutadas,     e das noites  vivas.


Susana Duarte
Do livro "Pangeia", a lançar 

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

HO INDOSSATO


Ho indossato i pensieri più belli
per vedermi almeno una volta
specchiato nei tuoi occhi,
ma la densa nebbia delle mie paure
mi ti nasconde ancora.

Gianni Bianchi


"Through your heart passed a boat, that without you still follows its course"

Sophia de Mello Breyner Andresen



Non sai mai quanto sei forte, finché essere forte è l’unica scelta che hai.

Chuk Palahniuk




segunda-feira, 17 de outubro de 2016

e a ausência faz-se voz

em mim
e nas flores que percorro.

na ausência me cerceio
e na ausência me morro.

Susana Duarte


sábado, 15 de outubro de 2016

.
Subir
até ao teu mais fundo
céu,
.
Livre
dos sentidos
celeste
de afectos.
.
Criar
essa tua vontade
este pecado do homem
unido a ti
ao sabor do vento.
.
Feliz
te guardo o nome
alento único desta minha vida
que sem ti nada é.
.
.
antónio carneiro
.
.


quarta-feira, 12 de outubro de 2016

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

existe a mulher, 
e existe o homem.

entre eles, a demora
e o abraço suspenso
onde os olhares 
não se encontram.

existe a mulher,
e existe o homem.

da sua paixão,
sabem as paredes
que testemunharam
o encontro breve
das mãos.

existe uma mulher,
e existe um homem,
concretos e indefinidos,
incongruentes 
como os beijos,
testemunhas 
da sua própria morte,

sempre que a mulher,
e o homem,
se fazem algaço 
nas praias de um tempo
que não existe.

Susana Duarte 



De Maria do Rosário Pedreira


domingo, 2 de outubro de 2016

"Solo gli inquieti sanno com’è difficile sopravvivere alla tempesta e non poter vivere senza. "

 Emily Bronte