domingo, 23 de março de 2025

Mamã.

 existias 

muito antes de me dares à luz,

   talvez desde o tempo das cerejas 

      ou dos invernos que preferias à canícula de Agosto.


existias muito antes do tempo 

 em que passei a existir no ventre, 

              nos braços 

   ou nas caminhadas lentas dos tempos recentes.


existo através de ti, por ti, 


-mulher, professora, mãe, 

     emigrante, cátedra, defensora 

 da Liberdade e da Democracia 

                e do Saber.


  existias como as rosas: viço e perfume, 

beleza e suavidade, 

        decidida e segura,


antes das tonturas

                 e da lentidão dos passos.

  


sabes, minha mãe, 

que não soube nunca 

ser sem ti,               sem te saber por perto, 

        sem poder olhar nos teus olhos 

               agora dolorosamente ausentes.


era simples. 


       estavas lá, à minha espera.


sabes que as aves cantam na nossa rua,

                  e que as rosas dos vizinhos voltarão     

   a desabrochar 

            naquele canto do caminho 

que fizemos juntas:


olho para tudo para que vejas,

     através dos meus olhos, 

         tudo aquilo que te corria nas veias:


    desejo de simplicidade,  

       de natureza 

            e de lealdade


e, vendo, 

acredito que os teus olhos vivem

         através de mim,

por mim,


para me aquietar o coração triste


         onde a tua ausência se demora 

 e sou menos, infinitamente menos, 


do que era,

do que podia ter sido, 

do que queria ser


aos teus olhos, 

 os únicos olhos onde fui imensa, maior


do que eu mesma, 



      maior do que a promessa,


         e infinitamente menor 

                         do que o teu amor.


Susana Duarte, tua filha.

A Senhora Professora Maria Elisa Rodrigues Ribeiro, minha amada mãe 🙏 




quarta-feira, 5 de março de 2025

...a descoberta de que nada sabia sobre a tristeza...

 não sei se a tristeza colhe 

as nuvens, onde vivem

os espectros das noites 

antigas. não sei,


sequer, se as noites

continuam no mesmo lugar. talvez

tenham partido para o sítio onde 

as lágrimas colheram cerejas, e 

as depositaram num vale antigo.


não sei se as noites voltarão

a ser lugares de interdito,


ou antes os desertos

por onde se escoam as aves

fugidias


(talvez fantasmas, 

                     talvez apátridas)


onde escondo os nomes e


                                         fujo de mim.


Susana Duarte

2016

 sobrevoas as noites, onde as flores são os ângulos escondidos das veias. apareces, como um fantasma povoas sonhos e roubas segredos. 


sobrevoas os dedos, onde as noites são raras. partes, todas as noites, mas pairas sempre sobre os passos através dos quais perscruto os caminhos.


caminhas sobre os meus passos e, todavia, não estás. matas-me e regressas, como um espectro que desalinha as flores e insemina de ausência os dias. 


perdido, tu próprio, nas linhas oblíquas da chuva, congeminas olhares onde os teus olhos já não estão.


desaparecerás, um dia, dos caminhos 

dos sonhos e dos beijos por dar. nesse dia, a luz-outra será o véu através do qual deixarei de te ver,  qual névoa de Setembro, qual gota de chuva caída dos beirais de uma casa, eclodindo na calçada para, depois- e para sempre- se ocultar das pedras.


desapareces já, noite após noite, onde os sonhos não te nomeiam  e os dedos não te procuram. talvez sejas já, apenas, a sombra dos dias  de ontem. o teu nome não me cerca. 


os teus olhos desaparecem com as chuvas. a vida, um dia, recomeçará:  fantasma, presença, ausência de todas as ausências dos meus braços.


nesse dia, não mais sobrevoarás as palavras.


Susana Duarte

2014

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

 é, então, isto o Amor:


a quieta submissão da vida 

aos braços do Outro de nós,

roteiro das bermas


onde podemos descansar.


é, então, isto: 


a eternidade quieta 

dos momentos de silêncio, o olhar

aquático das noites e o corpo

posto em sossego 


diante da aurora.


é, então, isto o Amor: 


sol primevo dos sorrisos, 

pegada indelével sobre os cílios,

impressão digital do peito

sobre as sombras 


de outrora.


é, então, isto a vida,

seiva segregada na ponta dos dedos,

trevos que te nascem das mãos 

quando, num sorriso, afloras 

a alma antiga 


que carrego dentro.


Susana Duarte 



quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025


 tenho a idade de todas as idades, 

de todas as cidades,

contente no descontentamento 

de ser invisível


enquanto desenho  noites

nas esquinas da alma.


escrevo sons no ar,

na sonora imensidão dos peixes.


na terra, abro as mãos

e perfumo de incerteza o dia

e leio 

-nas entrelinhas

silabadas de um jornal antigo-


a palavra-sabor, 

a palavra-abrigo.


Susana Duarte



quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

 Tenho nos olhos 

a veia côncava da vontade

de erguer sóis


ainda que o nada se agigante.


Susana Duarte


quinta-feira, 16 de janeiro de 2025

 beija-me os olhos marejados 

de ausências


e ausenta-te de ti, 


navegante flávio

dos meus cabelos negros


e das sombras 

que me habitam.


estou onde não estás

(tento respirar)


Susana Duarte




Mamã.

 existias  muito antes de me dares à luz,    talvez desde o tempo das cerejas        ou dos invernos que preferias à canícula de Agosto. exi...