sábado, 16 de novembro de 2024

 suspensa nas tuas palavras,

pétala descaída de uma flor iníqua,

resta-me a memória.


és, foste, terias sido, 

o parto feroz,

a corrente avassaladora de uma maré.


suspensa nas memórias das tuas mãos,

sombra flutuante 

de uma margem qualquer,


permaneço. 


permaneci angustiada na espera

de uma qualquer vontade,

tão inglória quanto insignificante


e tão frágil quanto uma gota de orvalho.


as mulheres suspensas nas memórias

são as mesmas que se espelham 

em olhos alheios, 

tão estranhos quanto o miado 

dos gatos, e tão solitárias quanto eles.


Susana Duarte

terça-feira, 12 de novembro de 2024

 enevoada, nublada 

         como as paisagens que percorro,


sobrevoo as ranhuras da mente

    onde revejo os dias anteriores à mágoa. 


sou, como as gotas de chuva, transparente

       e temporária. infiltro-me insegura 

nas  sementes  do que antevi, 

   e escondo da luz a brevidade

                     do que sou. 


Susana Duarte


domingo, 10 de novembro de 2024

 é, então, isto o Amor:


a quieta submissão da vida 

aos braços do Outro de nós,

roteiro das bermas


onde podemos descansar.


é, então, isto: 


a eternidade quieta 

dos momentos de silêncio, o olhar

aquático das noites e o corpo

posto em sossego 


diante da aurora.


é, então, isto o Amor: 


sol primevo dos sorrisos, 

pegada indelével sobre os cílios,

impressão digital do peito

sobre as sombras 


de outrora.


é, então, isto a vida,

seiva segregada na ponta dos dedos,

trevos que te nascem das mãos 

quando, num sorriso, afloras 

a alma antiga 


que carrego dentro.


Susana Duarte 

(Para ti, Pedro)




terça-feira, 22 de outubro de 2024

 abro ao porta ao silêncio

como se as palavras suspensas

fossem âncora, navegação à vista

ou salvação


sabes que não há paredes 

onde impera a solidão dos pássaros


nem cães a ladrar nas ruas


olho a chuva que cai e desnudo 

o silencioso piar de pensamentos ocultos


só a chuva, e o silêncio,


e tu


sabem das estradas que percorri, e da vontade

submersa de voar


Susana Duarte


terça-feira, 1 de outubro de 2024

 chama pelo meu nome, como chamaste 

as aves sem céu, as aves perdidas 

sobre o vôo lento das ondas,

em cada uma das manhãs 

    reclamadas pelo sangue

        dos dias.


chama pelo nome        de todas as auroras

percebidas e, sobre cada uma 

das manhãs antecipadas pela lágrima 

    solar do tédio, constrói os dias 

      

              da redenção. 


oprime as lágrimas, 

apaga as chamas, deseja 

    o nome, e corre por entre as ruas

             da antiga segregação dos corpos. 


sabes onde estou, porque caminhas

    por entre as peles desafiadas

pela conjunção das imagens solitárias

        que nos povoaram             os dedos.  


não mais sós, os dedos multiplicam

      manhãs novas e gritos solares na pele.


Susana Duarte

sexta-feira, 27 de setembro de 2024

 é preciso dizer "amor"

sorvendo a vida de todas as letras.


é preciso afirmar o amor 

nos cílios,

nas pregas de pele dos cotovelos

ou nos recantos escondidos das axilas


vivas 


quando as mãos tocam piano,

tocam os ombros, as espáduas e o ventre.


é preciso dizer "amo-te"

às dúvidas e às expansões que as perguntas 

geram, como se gerassem um filho


no ventre inquieto. 


é preciso afirmar a voz sobre a pele,

a pele sobre a pele,

a pele sobre os olhos 

e os olhos sobre a boca,


dedilhando letras

como quem sopra vida 


na mente irrequieta do corpo amante.


[é na boca que calamos toda a angústia]


Susana Duarte


terça-feira, 24 de setembro de 2024

 trago o silêncio nas veias,

como uma veste antiga


sobre o lado do avesso 

dos ossos.


visto-o,  tão sagrado 

como outra veste qualquer,

como outro corpo qualquer.


espelho os lugares

onde o sangue se demora


e pergunto quem sou.


Susana Duarte

 suspensa nas tuas palavras, pétala descaída de uma flor iníqua, resta-me a memória. és, foste, terias sido,  o parto feroz, a corrente avas...