beija-me os olhos marejados
de ausências
e ausenta-te de ti,
navegante flávio
dos meus cabelos negros
e das sombras
que me habitam.
estou onde não estás
(tento respirar)
Susana Duarte
nada te resta, senão olhar-me de longe. sabes que habito outro plano, o do dia e da luz com que prossigo, todavia, sobre as flores submarinas. nada te resta, senão as lágrimas e o arrependimento. talvez possas ressurgir, noutras vestes, noutros seixos. mas serás sempre a sombra, a vida incompleta que se declina nos lugares que já não procuro.
roubo à rua
o sol que me pertence:
a clandestinidade indistinta,
a sombra das palavras
negadas,
interditas,
ditas onde os terrenos
aguardavam a chegada
do beijo.
roubo ao sol o calor
do vôo, quando as aves soletram
manhãs de inverno,
separando as letras
de cada rumo
ao sul.
roubo o nome
decalcado na terra,
onde sou norte e sou sul
e decido para onde vou.
Susana Duarte
sobre o silêncio
pesam as almas das aves,
das mulheres sós e da amálgama de peles
ao relento
em terreno nú
nas escadas paridas pelas dores
de alguma desconhecida
só
sobre o monte úmbrio
dos sonhos
e os braços das mulheres
(fortes e redondos e duros e içados ao vento
como os mastros das naus e as asas
de um qualquer deus que rumou ao sol)
sob o silêncio
(ou dele)
nascem rochas perenes devassadas
pelos ventos do norte
ou pelas pernas caminhantes das mulheres
(outrora véu negro sobre os cabelos)
e elas caminham e caminham e caminham
rumo a um deus qualquer,
embutido de um qualquer orgulho nado-vivo
ecce homo
ecce mulier
quem somos? o que somos, quando a mágoa
enche os redutos do pensamento
e os poros
e os dedos nascidos dos trevos
e as poções declinadas ao relento
e as mulheres caminham e caminham
e caminham por sobre o silêncio
e as aves
e as peles
e o sangue que perdura
ou se perde
por entre pernas doridas paridas pelos dias
ecce femina
e os sobressaltos
não são mais do que noites de sono
sem fundo
e vozes antigas
e pele
e nada.
(talvez)
Susana Duarte
metade de mim é silêncio.
onde o silêncio habita as margens
das veias, habita igualmente o mar
tempestuoso
dos meus pensamentos.
metade de mim é silêncio,
e mais não sei. sei apenas
da inexistência
dos nomes que não visito,
dos rostos de que apenas
guardo memória,
da solidão que me mora no sangue,
e da metade de mim que é silêncio.
outra metade, são as quimeras,
as viagens que demoram,
e a demora da tua pele.
metade
de mim seriam as águas perdidas
e os voos picados
por sobre as ondas.
metade de mim é silêncio;
metade de mim é o que não sei.
Susana Duarte
2020
Identidade
são etéreas, as memórias. talvez apenas ilusões, talvez apenas estórias
de abraços desabituados dos corpos.
são névoas, as canções. talvez fossem sorrisos,memórias de abrigos e de corações interrompidos, navegados, ou...mortos.
a morte da memória é o esquecimento,
e o apagamento da sombra das mãos:
aquelas que, outrora, foram tuas, impressas
num ventre oculto, navegadas elas pelo ventre,
demente, talvez. esquecido. doente de
abandono.
[quem és? quem foste?]
Susana Duarte
2016
irrequieta perante o desconforto das lágrimas
(talvez quieta quando me abraças, inquieta
quando me percorres com os dedos
e me abres caminhos na pele)
sorvo o ar que respiras e páro de nadar
sob o teu peito, suspensa como o ar rarefeito
do que desconheço, e protejo, e calo,
e transbordo, anoiteço e durmo
sem ar e sem sombras e sem luz e sem ti
mas contigo e com luz e com ar e com dia
e com noite e com passos
e com a caminhada que desconheces
e intuis, e renegas, e entregas ao futuro
das promessas que fizeste - a ti, a mim,
aos dias e ao que desejas e não sabes.
irrequieta perante o desconforto, quieta
diante das certezas, talvez inquieta
na amálgama das mãos e dos pés
e dos braços e das peles e dos corpos
quando transbordas de dia e de mim:
pele suave de ave perdida, no vôo incerto
da vida que tens dentro ,
no afogamento lento das incertezas
e nas vozes situadas num recanto dos braços .
Susana Duarte
beija-me os olhos marejados de ausências e ausenta-te de ti, navegante flávio dos meus cabelos negros e das sombras que me habitam. esto...