quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Os dez lugares do amor.

-Foram dez, os lugares do amor…-pensou ela.
A estação dos comboios foi, de todos, o primeiro e, de todos, o derradeiro. As portas do ocidente abriram-se-lhe, olhos postos no sorriso que anteviu e no encontro que –temia- poderia nunca acontecer. O encontro, afinal, aconteceu, e teceu-se com as mãos que anteciparam os beijos, as madrugadas claras, e o suor dos corpos reencontrados.
Refém de si mesmo, e dos cabelos negros que abraçava, ele libertava anos de procura, ao mesmo tempo que, dos seus olhos, saíam névoas preocupadas: tudo mudara e, no entanto, tudo tinha, ainda, que mudar.
- Este é o segundo dos lugares do amor…-pensava ele, mãos dadas sobre o leito, sorrisos postos no futuro que antevia.
A vida acontece inesperadamente. Confronta. Exige respostas e capacidade de ajustamento. Acontece. Ao acontecer, traz consigo o cheiro de todas as infâncias, o eco de todos os receios, e a inevitabilidade das decisões. Ele intui que, a partir dali, outros serão os lugares do amor. E sabe que, a partir daquele encontro, tudo mudou e, no entanto, tudo terá, ainda, que mudar.
Os dias sucedem-se, e os lugares do amor são vividos com a respiração ofegante de quem quer viver a vida toda nos dias que lhe são dados, um de cada vez, hora a hora, segundo a segundo. E, inevitavelmente, acabam.
O rio, navegante incansável, escorre ali mesmo, entre as margens que o delimitam e são, simultaneamente, todas as suas possibilidades de progresso e caminho. O rio foi o nono lugar do amor. Sobre ele, fluíram marés originadas por aquele encontro. O mundo tinha mudado a lógica das coisas. A inevitabilidade do encontro, também mudara tudo o que conheciam. Os corpos transpiraram marés, por sobre o fluir do rio, e por sobre o fluir daquelas duas vidas.
-Este deveria ser, apenas, um dos lugares do amor-pensavam eles-, mas o derradeiro será aquele que apartará os corpos.
Se sonharam, nessa noite, sonharam com as flores colhidas, após as sementes deixadas na terra, numa sucessão de estações que viveriam juntos. Sonharam, talvez, com as noites, e os dias, e o devir. Sonharam, talvez, que tudo o que ainda tinha que mudar, já estivesse mudado, portas abertas, a ocidente, para todos os lugares do amor. Sonhar os luares do amor era a única forma de não ficar só. a solidão da separação, após ter tocado o amor, é escura, e fria, e dolorosa, e inevitável e, aparentemente, eterna. Escrever a vida, trilhando caminhos sem dar as mãos, depois de conhecer os lugares do amor, é aprender a caminhar numa noite longa e fria. Acordar, pois, é antever a ferida aberta no íntimo do corpo, e descobrir o frio na aparente invencibilidade com que se acorda em cada dia.
Ele, e a metade de si, separar-se-ão naquele que foi o primeiro-e será o derradeiro-lugar do amor, aquele onde se olharam nos olhos e deixaram as lágrimas soltar a noite de chuva que viveram, dias antes, os dois, de mão dada a enfrentar as intempéries-todas-, que acreditaram poder vencer.
Ficarão ligados, para sempre, aos dez lugares do amor. Abraçar-se-ão em cada sonho, em cada recanto de cada palavra. Saberão da inevitabilidade do reencontro. Até lá, reaprenderão a vida, e a morte, e a saudade, e o amor, e a ternura, e a ausência, em cada primavera antecipada, em cada estação que, todavia, os separar ainda.
- O décimo-primeiro lugar do amor, terá que ser aquele onde perdemos as mãos, porque o outro as levou consigo- pensou ela.
Ao mesmo tempo, ele pensava que as mãos que deixou, voltarão a si, no momento em que devolver aquelas que, consigo, em si, levou. Porque sabe, desde já, que se encontrarão no abraço, aquele que será dado no décimo-primeiro, talvez último, lugar do amor.

Susana Duarte



terça-feira, 28 de outubro de 2014

de todos os olhares que conheci

de todos os olhares que conheci,
o das borboletas será o único
a eternizar as sombras
por entre as brumas
e os odores
de aves
ensimesmadas,
como és,
como sou, 
apesar das ondas
e dos fetos floridos de água.



sábado, 25 de outubro de 2014

"Our deepest fear (...)"

"Our deepest fear is not that we are inadequate. Our deepest fear is that we are powerful beyond measure. It is our light, not our darkness that most frightens us. We ask ourselves, 'Who am I to be brilliant, gorgeous, talented, fabulous?' Actually, who are you not to be? You are a child of God. Your playing small does not serve the world. There is nothing enlightened about shrinking so that other people won't feel insecure around you. We are all meant to shine, as children do. We were born to make manifest the glory of God that is within us. It's not just in some of us; it's in everyone. And as we let our own light shine, we unconsciously give other people permission to do the same. As we are liberated from our own fear, our presence automatically liberates others." 

— Marianne Williamson (A Return to Love: Reflections on the Principles of "A Course in Miracles")


domingo, 19 de outubro de 2014

Piazzola



"Si, es cierto, soy un enemigo del tango; pero del tango como ellos lo entienden. Ellos siguen creyendo en el compadrito, yo no. Creen en el farolito, yo no. Si todo ha cambiado, también debe cambiar la música de Buenos Aires. Somos muchos los que queremos cambiar el tango, pero estos señores que me atacan no lo entienden ni lo van a entender jamás. Yo voy a seguir adelante, a pesar de ellos."
Astor Piazzolla, Revista Antena, Buenos Aires, 1954.

...

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

casas

somos  casas desenhadas 
no confim dos ossos, 

assombradas
pelos braços incandescentes
da solidão
das águas

somos braços de um céu
cujo azul não se demora,

assombrada a aurora,
e os amanheceres
do corpo

somos casas desossadas
quando o inverno 
nelas mora, 

assombradas pelo riso
ilusório
das bocas

somos tudo, somos nada,
vazio que se preenche
no encontro prenhe
dos olhos,

no encontro dos dedos,

e nos fantasmas 
anódinos
das viagens 
das palavras

somos casas abandonadas,
residentes nos uivos
migratórios 
das solidões anteriores,

braços erguidos 
na procura do conforto
do riso

Susana Duarte


segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Nelma. No dia 13 de Outubro, para ti, onde quer que estejas, amiga.

Pergunto-me de onde me olhas.

Sei que as cores dos dias precisam do sopro quente do hálito dialogante, para que se possa acreditar na vida. E, todavia, acredito que me ouves. Que, porventura, nos vês, na azáfama diária de tentar perceber. 

De todos os confins, habitas o mais misterioso, o desconhecido, aquele que nos faz questionar o motivo das caminhadas apressadas que fazemos pela vida. 

De todos, habitas os confins mais aquáticos, originais, aqueles que nos tragam, embora seja da água que, também, viemos. 

Pergunto-me se me ouves, e com que olhos me percecionas.
 Todas as madrugadas são um penhor à tua vida, vida entretecida nos corredores brancos da solitária aventura de querer viver, e nos corredores rosa da tua juventude. De que cor se vestem, agora, as malhas do teu olhar? 

Pergunto-me se sabes o quanto gostamos de ti. 
No eco mudo das encostas onde, agora, se encontram as vestes brancas com que te cobriram, procuro ouvir o som ridente da tua voz. Sabes o quanto gostamos de ti? Sabes o quanto queríamos, ainda, sorrir a teu lado? 
Pergunto-me, e nada sei desse lugar onde, serena, fazes ecoar os teus passos na Eternidade. 
E, todavia, creio. Creio na tua presença-flor-eterna nos corações onde, indelével, deixaste a marca da tua vida.

Pergunto-me se sabes onde estamos, porque habitamos um piso inferior àquele onde, doravante, moves, ágil, a tua alegria. Creio que nos olhas, olhar negro da imensidão da tua força, olhar meigo da negritude maravilhosa da tua pele, olhar eterno com que, agora, escrevo as saudades que temos de ti.

Até sempre, pequena, maravilhosa, e imensa amiga.



quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Nelma Goreth Gaspar de Almeida. 24 de Maio de 1999-7 de Outubro de 2014

as rochas vertem a água da eternidade dos teus olhos,
límpidos e cristalinos como as madrugadas sem tempo

não há névoas, e não há mágoas. há apenas a clara
e eterna sabedoria das águas. ficaste onde o céu 
é mais claro, mais luminoso quando o sol se ergue
imponente sobre o mundo. o calor do teu riso,
a beleza do sorriso, e a eternidade da tua presença
em nós, transformam as flores
-brancas flores das tuas mãos-
em raios de luz que nos atravessam,
e abraçam

saberás sempre mais, sobre as águas,
do que nós, sobre os sorrisos
que sobre os dias, derramaste

serás sempre 
o dia mais claro
em cada um
de nós.




terça-feira, 7 de outubro de 2014

Nelma.

Não Podemos Ter a Certeza de Nada


Somos todos iguais na fragilidade com que percebemos que temos um corpo e ilusões. As ambições que demorámos anos a acreditar que alcançávamos, a pouco e pouco, a pouco e pouco, não são nada quando vistas de uma perspectiva apenas ligeiramente diferente. Daqui, de onde estou, tudo me parece muito diferente da maneira como esse tudo é visto daí, de onde estás. Depois, há os olhos que estão ainda mais longe dos teus e dos meus. Para esses olhos, esse tudo é nada. Ou esse tudo é ainda mais tudo. Ou esse tudo é mil coisas vezes mil coisas que nos são impossíveis de compreender, apreender, porque só temos uma única vida.
— Porquê, pai?
— Não sei. Mas creio que é assim. Só temos uma única vida. E foi-nos dado um corpo sem respostas. E, para nos defendermos dessa indefinição, transformámos as certezas que construímos na nossa própria biologia. Fomos e somos capazes de acreditar que a nossa existência dependia delas e que não seríamos capazes de continuar sem elas. Aquilo em que queremos acreditar corre no nosso sangue, é o nosso sangue. Mas, em consciência absoluta, não podemos ter a certeza de nada. Nem de nada de nada, nem de nada de nada de nada. Assim, repetido até nos sentirmos ridículos. E sentimo-nos ridículos muitas vezes e, em cada uma delas, a única razão desse ridículo é não conseguirmos expulsar da nossa biologia, do nosso sangue, dos nossos órgãos, essas certezas injustificadas, ou justificadas por palavras sempre incompletas. Mas é bom que seja assim. Porque podemos continuar e, enquanto continuamos, continuamos. Estamos vivos. Ou acreditamos que estamos vivos, o que é, talvez, a mesma coisa.
— Porquê, pai?
— Porque o amor, filho.


José Luís Peixoto, in 'Abraço'


Estarás sempre connosco. Tu, o teu sorriso maravilhoso, e a tua esplendorosa e luminosa forma de ser. Ensinaste-nos muito. O teu rosto viverá sempre dentro dos nossos corações.



domingo, 5 de outubro de 2014

Excerto do poema "Ausente", do livro Pangeia, de Susana Duarte, a lançar brevemente pela Alphabetum Editora

(...)

a vida                            dilui-se                                       no claro-escuro de uma manhã estranha,

perde-se nos lugares onde fomos água                       e nas flores vermelhas de um poema-paixão

que só se concretiza nas mãos                         quando agarro as penumbras de um sonho ambíguo

(como todos os sonhos)                  e, nas asas, deito as estrelas que caíram de um céu escuro-azul-

-estremecido-contemplativo         de aves estarrecidas ante a fúria do deserto        onde me deitei.

(...)

sábado, 4 de outubro de 2014

...

[...]
Há quem saiba tudo sobre plantas, peixes,
Eu, sobre separação.
Há quem saiba os nomes das estrelas todas,
Eu recito ausências.
[...]
Nazim Hikmet, "Autobiografia"



silêncio




revejo o sibilar da noite

em cada uma das estrelas

que encheram de sonhos

os dias antigos. nesse

silêncio cadenciado

de sons fortuitos,

revivo os braços

e os lábios 

amadurecidos

pela paixão dos corpos

outrora vazios, ora cheios

de luar em cada curva.

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Beijo



beijar-te-ia os olhos, 
se de ti se aproximassem as pálpebras e,
no ímpeto da proximidade,
 pudesse encostar, a ti, o rosto. 
seria a impulsividade do abraço, 
o moto da vida e o caminho-espaço
onde o tempo se estreita 
e se torna infinito. a infinitude 
onde te abraço, é a cor púrpura 
do peito e a negação da solidão.
 alma.
nesta cor onde navegas, 
habita uma ave, livre, 
a paixão calma,
nomeada, dita, entretecida 
nos momentos onde risos e lágrimas
se enleiam nos gestos 
e se tornam eternidade em nós. 

beijar-te-ia. 
suave melopeia de quatro olhos 
que se navegam. 
urze viva.

beijar-te-ia o centro navegante das noites 
e saberia se as aves 
cantam em dueto. 
ouviria as doces notas do teu canto.
pudesse eu encostar, em ti, os olhos 
que tudo ouvem. esses, residem 
no peito, escavado de doces memórias, 
onde é nosso o sorriso 
da lua. 

beijar-te-ia. e saberias que é nosso o riso. 

pudesse eu
saber das noites inscritas no tempo 
onde não há tempo para ser
só. 
não há tempo para ser só. 
há tempo, apenas, para sermos
dois. um. eternidade inscrita no espaço 
das estrelas. claras, 
luzentes, belas. sabemos de nós, 
e sabemos do peito. sabemos
do corpo, finito, estreito, 
conjugado a dois nas noites de chuva.

beijar-te-ia. 
apenas isso sei. 
declino em ti a maré. 
e tudo o que és,
é aquilo que sei. do mundo, 
nada mais importa. 

a vida vive em ti.

Susana Duarte

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

nada ficará das cerejas




nada ficará das cerejas, senão a rubra coloração
dos lábios quando, intempestivo, ecoaste
beijos na minha boca. delas, sobra 
agora a lenta noz da agonia,
quando o beijo apenas 
soletra a palavra

saudade.




 metade de mim é silêncio. onde o silêncio habita as margens das veias, habita igualmente o mar tempestuoso  dos meus pensamentos. metade de...