Levantas as asas num voo rasante da alma vulcânica; transbordas de aromas de terra; em
ondas sísmicas, atravessas o rio que engole a indiferença e a efabulação.
Unes o vento e o mar num terremoto anímico onde voam sereias silenciosas e Orfeu canta.
Mas não olhas para trás. Sabes que é à tua frente que o caule inflorescerá. Invocas as
deusas, e serenas a dualidade da alma.
Insinuas a noite na desfolhada da pele que sintetiza o canto, que se fez manhã, e celebrou a
paixão. Deixas a claridade da dor invadir-te a alma e reconstróis, assim, a nuvem que
se volatilizou.
Sabes onde fica um deserto onde flores secretas desabrocham à noite. Flores, flores, flores
descobertas, antes ocultas do mundo, em casas fechadas- refúgio, anel, papoila rubra,
animal, noite, sofreguidão, solidão. Refúgio. Ali, onde alumias as noites, é o sítio onde
nasces e fazes nascer, onde tornas clara a profundidade da palavra – amor amor amor.
...
Letras. Soletras cada escama num peixe dos mares do sul. Soletras cada onda num sismo
tentacular que não te tolhe de mim. Sabes onde fica cada movimento, cada passo, cada
letra do nome que me deram. Ouves as aves em ilhas perdidas que ecoam a ausência.
Uno e indiviso, clamas por uma flor, que não queres encontrar. Dualidade. Ó onda, maré, ave
perdida no mar. Flor do sal do sal do sal, flor do sal que cai fina, na rede solta
que abriste aqui. Desata este nó, desata. Puxa a corda que estendeste e leva-me pela
penumbra do teu braço.
Iça-me. Leva-me. As velas são brancas, e tu és aqui. Marinheiro de mim, corredor de
distâncias, passeias a noite pelas mãos e ergues o dia com os olhos. Lava quente que
preenche a fenda na terra por lavrar. Pó, cascalho, pedra. A forma a começar. A escultura
que sai dos dedos.
Sabes, não sabes? Esculpes cada desejo num torno universal. Pulsões de vida. Eros e Tânatos.
Pequena morte. E tanta vida…Conchas. Sou concha na tua mão. A erosão do tempo que
nos trouxe aqui. Salvífica. Pedra escultórica. Animal. Lobo. Tigre. Águia em voo. Ave . Ave.
Ave.
…
Lava-me os olhos com a humidade transparente da tua voz. Metamorfoseia-me o ombro em
que fazes descer a luz. A luz, a noite. Tu e eu, eu e a atomização do ser. Despidos de
pudor, de pânico e de nós-seres-individuais, metamorfoseando-nos no ser indivisível que
o amor procura.
Unidade. Ser. Índio que dança na altura das rochas emanadoras de apego ao Universo.
Expectante. Dorido. As Moiras procuram-te. Mas é com Hermes que caminhas. Nos ventos
alíseos procuras o sopro da vida que permaneceu algures na linha temporal que o Cosmos
criou. Nos ventos solares, um raio de luz queima a terra onde navegam almas solitárias. A
diferença é a Procura. A Procura não da completude, mas da epifania do olhar-outro.
Cosmicidade. Passar além do Self. Lutar pelo outro. Descobres que amas. Que crias o
sonho do encontro. Encontro.
Insinuei-me na tua voz. Ouviste as vibrações das cordas vocais. Resistes ao apelo de Eros? É a
tua bela Helena? Ela, que ao espelho, se reflecte e teme? Que se olha, mas se não vê?
Que procura, no teu olhar, a magia da descoberta? Quem dera fosse visível o arrepio
anímico. Descobrir-te os recantos escondidos sob os braços genesíacos. Cobre-me o rosto
com o teu peito. Enche-me de ti. Respira-me a pele e deixa-me viver no teu olhar.
Sabedoria. Saber e não saber. Não saber e querer descobrir. Por momentos, a noite que se
levanta da alma. Um bater de asas de borboleta invoca a Criação. Génesis em mim.
Renasço em ti. Soluças um choro de sonho e conhecimento. Deixas de lado as coisas
gastas. Usas a vida para seres inteiro. Insondáveis desígnios universais, átomos que se
congregam. Odores voláteis que te trouxeram aqui. A imagem lávica da claridade solar
na curva dos olhos. Ficas? Fica…dissipa o nevoeiro e despe-me de pudor. Tira-me das
asas o fio invisível que lhes pus. Fica. Lobo. Ave. Ave. Ave. Rumamos ao centro do mundo,
para nos fundirmos com a Origem.
Susana Duarte
"Pescadores de Fosforescências"
"Pescadores de Fosforescências"
Alphabetum Edições Literárias
Dezembro 2012
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