sexta-feira, 31 de janeiro de 2020




há um poema que não foi escrito,
e uma flor por nascer

entre mil olhos sem palavras,
o rosto ambíguo da vida
devolve os sentidos

e as palavras sem eco

ficam, então, por dizer, os rostos
dos amantes e os dedos
das mulheres- tão ambíguas
como a vida cujo rosto
escreve poemas



Susana Duarte


domingo, 29 de dezembro de 2019

Mágoa
(ouvindo «Corpse Bride, piano duet»)

acendeste mágoas                onde os seios descansam

amas como as metáforas          das romãs,   
e sabes ainda a noite,

e sabes a dia,        e sabes às manhãs ígneas
da abertura dos olhos                 e das nuvens brancas.
acendeste mágoas, e por isso, sabes aos dias
de antes,                 e ao esquecimento, depois.

sabes às dores do peito,          incendiado pela solidão  das noites,         onde as sacerdotisas nasciam,            fluxos de terra,         e de seiva, e de luz.                               sabes a tudo,
e sabes a mágoas        acesas          pelo fluxo 
                                                   da noite.

acendeste as águas do ventre,      que depois calaste                            amas como as rubras
manhãs do desejo,              e sabes às maçãs colhidas no arco da primavera;             

revejo-te,                   obelisco erigido em mim,               

                    culto das manhãs onde te espero.

Susana Duarte


terça-feira, 17 de dezembro de 2019


preciso do silêncio,
das aves

e da solidão nomeada
pelas sílabas
largas

do vôo por fazer.

preciso da sombra que nasce
da insuspeita asa
da árvore

que traduz o ar
e perpetua a vida.
preciso, enfim, da asa branca
das névoas quando o mar 
incendeia as arribas,

derruba os fósseis
e reencaminha o ímpeto de viver.

é sobre o totem vivo
da tua vontade que me ergo.

diz-me onde estás. 

Susana Duarte


quinta-feira, 12 de dezembro de 2019



a invenção das aves
nada ensinou sobre o desapego.

trouxe consigo a lucidez das águas,
a trégua entre a nascente e a foz.
nada disse sobre a vida anaeróbia
dos sobreviventes. nada disse
sobre a perda da voz. as aves são
entidades abstractas: nomeiam
as ilusões e apegam-se


às rochas erodidas, onde o vôo
é abismo, interdito, drama
e redenção.

Susana Duarte

quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

cabem todas as vozes
no peito ávido dos olhares
trilhados pelos caminhos longínquos
                                        e pelas ondas.

cabem todas as mágoas
nos olhares das aves, e todas as aves
nos olhares                      das mulheres.

no desassossego do voo,
existes tu, folha caída de uma árvore
sem raízes. existes onde as águas
desassossegam o mar líquido
do ventre, e as folhas
perenes agitam
                                              as sombras.

não existe nada, para além das aves,
e das ondas, e das sombras...
talvez existam                   as memórias,

as folhas caídas e
o que fomos ontem:.         um homem,

e uma mulher -         atraídos pelo vôo
das palavras que, por serem ditas,
soavam a                             eternidade.

Susana Duarte

segunda-feira, 25 de novembro de 2019

um dia, esquecer-te-ás do meu nome:
lembrar-te-ás que nos conhecemos
no lado solar de uma estação de comboios,
 por entre passos soletrando a solidão. clamarás o nome antigo das horas passadas
no silêncio dos corpos, e serás triste
como os olhos que deixaste.

um dia, esquecer-te-ás de que fomos
um, tropeçando nos dedos como quem ri,
e nos corpos como quem tem fome 
e sede e desespero, ou a impressão 
digital de lutas antigas; ainda te lembrarás
das palavras, mas nada terá o sal e o sangue 
e o fogo dos dias tornados perenes 
num seio frio.

partiste e, como quem parte,
deixarás para sempre os lábios de outrora,
interditos como as auroras que viste
nascer; serás sombra, e pó, e o piar das aves
sem sonhos, ou um vôo sem plúmulas.

serás, enfim, a sombra do sonho e o uivo
negros dos olhos-os meus- que fechaste
numa tarde inícua, naquelas linhas escritas
a ferro, onde as lágrimas não bastaram. 

Susana Duarte

domingo, 27 de outubro de 2019



o corpo pobre em poemas
desfaz a água caída
sobre o ventre,
conduz as luas à queda


abrupta

sobre as vertentes úmbrias,

e liquefaz as certezas,
transformando-se em algoz

de si mesmo,
isolado, desolado, perdido
e naufragado nas palavras
ausentes

Susana Duarte

 06/08/2025 em crescendo, soluçam em mim dias e noites vazias onde, dantes, caminhava ao teu lado. queria tanto ver-te em sonhos. queria tan...