domingo, 18 de dezembro de 2022

 um dia, esquecer-te-ás do meu nome:

talvez te lembres que nos conhecemos

no lado solar de uma estação de comboios,

por entre passos soletrados e a imensidão

das solidões que passavam por nós.


chamarás o nome antigo das horas passadas

no silêncio cúmplice dos corpos, e serás triste

como os olhos que deixaste. um dia,


esquecerás que fomos um, tropeçando

nos dedos como quem ri, nos corpos 

como quem tem fome e sede e desespero

e a impressão digital das lutas antigas.

ainda te lembrarás das palavras, mas nada

terá o sal, o sangue e o fogo dos dias 

tornados perenes num seio frio.


partiste, e como quem parte, deixaste 

os lábios de outrora, interditos como amoras;

serás sombra, e pó, e o piar de aves 

sem sonhos, ou o vôo de plúmulas perdidas;

serás a sombra do sonho e o uivo negro 

dos olhos que fechaste na tarde setembrina,


naquelas linhas escritas a ferro,

onde as lágrimas não bastaram.


Susana Duarte


terça-feira, 13 de dezembro de 2022

 construída pelas dissonâncias,

sento-me  só e navego ondas 

de nada.


sou a antítese,

a matéria intrínseca do silêncio,


e as noites do nada onde me sento 


e sou.


Susana Duarte




terça-feira, 6 de dezembro de 2022

 o silêncio determina as vozes 

com que as memórias se perpetuam.


as palavras aniquilam a possibilidade

de regresso ao tempo das uvas.


é na forma como te colho o olhar, 

que renasço dos vôos passados:


são as quimeras que içam as vozes

ao lugar das auroras suavizadas 

pela presença das mãos, tão eternas

quanto os olhos, tão estranhas como eles-


tão díspares como as noites vívidas

e as outras, pó e nada e resistência e solidão.


Susana Duarte


terça-feira, 29 de novembro de 2022

 metade de mim é silêncio.


onde o silêncio habita as margens

das veias, habita igualmente o mar


tempestuoso 

dos meus pensamentos.


metade de mim é silêncio,

e mais não sei. sei apenas 


da inexistência


dos nomes que não visito,

dos rostos de que apenas

guardo memória,


da solidão que me mora no sangue,


e da metade de mim que é silêncio.


outra metade, são as quimeras,

as viagens que demoram,


e a demora da tua pele. 


metade 

de mim seriam as águas perdidas

e os voos picados 


por sobre as ondas.


metade de mim é silêncio;

metade de mim é o que não sei.


Susana Duarte

2020


domingo, 27 de novembro de 2022




 por vezes, apetece chorar 


a chuva que cai,

a noite que desce,

a morte dos outros,

a estrela coberta,

o dia que finda,

o corpo cansado,



o que não se sabe

e o que não se vê:



soltar o grito aprisionado

no limbo,

no oráculo,

no terço,

na oração,

na expectativa,

na rotina,



onde quer que seja,

onde quer que esteja,

onde quer que oiças,

ou não oiças,

ou não vejas



o que nem sequer sabes

se sentes,

ou ouves,

e se ages



ou não. talvez sim.

talvez saibas. talvez ignores.

talvez seja a chuva.

talvez não. 



e, afinal, o que é que importa?



Susana Duarte 

quarta-feira, 23 de novembro de 2022

 há um rosto escondido atrás

do meu rosto,

uma flecha inerte


perdida no espaço.


a voz,

a alucinação 

ou a máscara etérea do sorriso 


esgotado.


Susana Duarte


 o amarelecimento das folhas

é proporcional ao envelhecimento

dos insuspeitos olhos de outrora,

luzidios como as águas.


imersos, agora, nas folhas apodrecidas 

dos lagos dos dias,

os olhos amarelecem ao ritmo dos outonos

sacrificiais e dos tristes sorrisos 

convocados pelas mágoas.


o amarelecimento da vida

é proporcional aos anos desfeitos 

pela realidade, e às asas esbatidas 

        dos vôos 


            outrora imensos.


Susana Duarte

quinta-feira, 3 de novembro de 2022


 a asa pesa, no vôo 

disperso 

da ave esmaecida,


sempre que a fractura 

da plúmula é superior 

à elevação da mente.


a disforia dos olhos

desmente a flor branca 

da expectativa:


delirante o poema,

obtusa a pele


[fracturada a alma]


Susana Duarte

segunda-feira, 31 de outubro de 2022

 esgotei os poemas

onde as veias dilatam

a indefinição das paixões.


viva, estranha, escrita 

e interdita, corre a palavra

nos pulmões, alojando-se

nos interstícios 


de corpos estranhos,

cadavre exquis de si mesmos.


os poemas salvam 

a pele, onde esta se desfaz

e refaz no corpo

dos dias.


Susana Duarte

2020

sábado, 22 de outubro de 2022

 abro ao porta ao silêncio

como se as palavras suspensas

fossem âncora, navegação à vista

ou salvação


sabes que não há paredes 

onde impera a solidão dos pássaros


nem cães a ladrar nas ruas


olho a chuva que cai e desnudo 

o silencioso piar de pensamentos ocultos


só a chuva, e o silêncio,

sabem das estradas que percorri, e da vontade

submersa de voar


Susana Duarte

Hoje


quinta-feira, 20 de outubro de 2022

 quero de ti um poema de osso

e de asas, de rémiges 

escritas nos dedos


e de navegação da pele

sobre as mágoas antigas.


do voo, nada digas:


sobrevoa as costas 

das memórias, e transforma 

o poema na escrita da carne.


Susana Duarte


segunda-feira, 17 de outubro de 2022

 faço-me voz da tua voz


como se abraçasse,  inerte,

a tua presença


dela ficou apenas o silêncio

nublado com que descreveste

círculos


num pescoço nú.


Susana Duarte

2020

segunda-feira, 10 de outubro de 2022

 aconchego o silêncio onde renovo

as palavras adormecidas. encontro-o

nas ausências, e sou sombra das intenções.


aconchego o teu silêncio onde permaneces

quimera, estátua de sal ou ave derramada.

onde a morte desassossega os vivos,

sou quem não quis ser, e de ti, não sei.


encontro o silêncio cartografado na pele,

onde nada escreves,e onde vivem

as linhas vorazes de um vôo anterior à vida.


escrevo vozes. no lugar da vida,

eis a ausência das palavras.


Susana Duarte

terça-feira, 4 de outubro de 2022

 adormeço as palavras 

sobre a lua indigente,


sôfrega de céus e de lavras.


durmo eu, sobre as noites de outrora,

inventando palavras de noite

e de espanto 


-onde a lua cai sobre mim

e me invento barro, distância

e canto.


sou um esquisso,

noite inacabada, movimento de águas

revoltas sob uma lua ao mesmo tempo tudo,

ao mesmo tempo nada,


tão indigente quanto os gatos 

na estrada,


ou as mulheres desertas.


Susana Duarte

domingo, 2 de outubro de 2022

 há um destino em cada palavra:


evidenciado pelas manhãs rubras

das vozes antigas,


encerra uma novena,

uma prece dirigida aos cadavres-exquis

que povoam a mente lúcida.


houvesse apenas desconhecimento,

e o riso sobressaltaria a noite.


há um destino em cada palavra,

e nenhuma me conduz a ti.


Susana Duarte


sábado, 1 de outubro de 2022

 trago o silêncio nas veias,

como uma veste antiga


sobre o lado do avesso 

dos ossos.


visto-o,  tão sagrado 

como outra veste qualquer,

como outro corpo qualquer.


espelho os lugares

onde o sangue se demora


e pergunto quem sou.


Susana Duarte

sábado, 24 de setembro de 2022

 Melancolia 

(ouvindo “Possibility” – Lykke Li)


a melancolia das nuvens           transforma (se),                   mulher-peito-ventre obscuro                 de rosas,

renascendo ela ( a mulher)      das implausíveis


expectativas:          as que residem nas estrelas,

e mais não são             do que sonhos antigos              das feiticeiras.        a melancolia das mulheres

é a transformação do ventre do mundo,                   a morfologia das dores        e dos momentos,

           parto irresoluto dos amores das aves nos beirais de casas desabitadas.  


                         as rochas

são as estrelas transformadas na dor da partida.   e da sabedoria da razão: o adeus aos sonhos.  


Susana Duarte


domingo, 4 de setembro de 2022

 bastar-me-ia o mar,

se soubesses onde estou: ave perdida 

no sargaço


-talvez ave, talvez alga, talvez asa

             apodrecida por sobre a orla costeira-


talvez saibas onde reside a pluma solta,

a nave desmaiada, ou a areia adormecida

sobre o meu ventre nú


-nao saberás, nunca, da dor do silêncio

       em que pronuncio o teu nome, tão indizível

como o futuro esmaecido e o ar rarefeito


       em que me movo.


Susana Duarte


segunda-feira, 29 de agosto de 2022

 as pessoas são estranhas, entranhas de coisa nenhuma, cheias de vento


onde as mãos se acobardam. as pessoas são assim: uvas apodrecidas


pelas chuvas de verão, inconstantes e incoerentes como as nuvens e os gestos


que dizem ser, mas de que nunca são capazes. as pessoas são assim, estranhos


movimentos em redor das luzes, das quais fogem quando alguém as acende


e, por dentro, as incendeia de um fulgor que temem. são apenas pessoas,


e as pessoas nada são, senão as sementes do que, um dia, na infância, sonharam 


ser. e não são. são apenas pessoas, híbridos de luz e escuridão, de palavras 


sem corpo, e de corpos de nada. de nenhures. de coisa nenhuma. porque são


finitas, ao contrário das pedras, elas próprias erodidas pelo vento. as pessoas, não,


são apenas isso: pessoas, finitas e frágeis e receosas das intempéries que residem


nos olhos dos outros. protegem-se atrás das palavras, e nada são, senão 


o que sonharam ser, num tempo longínquo de amoras bravias colhidas pelas mãos


pequenas, de cerejas tiradas do alto, mais maduras e grandes, sem medo de cair,


e de dedos-de-bruxa colados aos dedos, encantadores e roxos na sua simplicidade.




as pessoas são estranhas, entranhas de coisa nenhuma, cheias de vento


onde os gestos se acobardam. são assim: coisa nenhuma. são medo e fuga.


as pessoas são apenas isso, e por isso, nada são.

sexta-feira, 24 de junho de 2022

 falta  a voz 

            e o sonho.

                          

                    

             sobra a melancolia


e o arder 

da noite.


Susana Duarte

domingo, 5 de junho de 2022

 dispo o corpo das palavras

e sigo o caminho da pele:


pele, poema, poema-pele onde

as ondas se abatem sobre o algaço.


sereno as asas onde os vôos

(onde?) não bastam para aquietar a sede

dispersa pelos anos perdidos,

oblíquos, obtusos,


situados onde não me reconheço

pele de ser pele, palavra de ser pessoa,

ou viagem, ou norte.

Susana Duarte




perdi o corpo 

onde as ondas apagaram as palavras

ou, talvez, onde os ossos rarefeitos


iluminaram os dias de ontem.


Susana Duarte

sexta-feira, 27 de maio de 2022

 Mulheres


(caminham por entre névoas

e sucumbem sobre as palavras 

ciciadas  pelos dedos. por entre 

as plúmulas leves dos sonhos

eis as sombras antigas

das aves).


escondo, nas palavras sussurradas 

por aves antigas, o sono leve 

das águas


(e durmo).


Susana Duarte

quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

 Tenho nos olhos a veia côncava da vontade

de erguer sóis


onde o nada se agiganta.


Susana Duarte

terça-feira, 25 de janeiro de 2022

 não consegues respirar:


          gritos silenciosos   

                  invadem o peito

                      cheio de lugares ocos.


não queres ouvir os ruídos 

                  que se propagam.


encontrar a luz: 

                               onde?


onde guardas os gritos 

                  que falam por ti,


junto às portas das gárgulas 

               que desenhaste nos ossos?


Susana Duarte


quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

 Caminhos

(ouvindo Laura Fygi, “Les feuilles mortes”)


da raiz à pedra, constrói-se um caminho,          semelhante ao percurso entre as mãos e o peito,

entre as folhas dos dedos e as grutas da boca,                                     e entre os desejos e o corpo.


os caminhos do desejo são construídos nas mãos,     e nos olhos,     e no cruzamento das peles.


entre mim e ti, a presença etérea da volatilidade das palavras.          escreveste-as onde não sei,

e acedes a elas através de memórias que não partilho.            o caminho é o do inevitável adeus

às lágrimas sussurradas nas noites vãs.   o caminho é o das névoas azuis dos sorrisos roubados,

entre as raízes dos jardins das mãos,                                      e as noites sublinhadas pela viagem. 


somos mónadas, e o caminho da evolução das folhas.


Susana Duarte

do livro Pangeia, não publicado


Caminho rente ao chão

 caminho rente ao chão

e não movo o tempo


ou as aves paradas cujos ossos

determinam o movimento 

do mundo.


caminho. destino-me ao tempo,

ao mundo e à incerteza 

dos passos.


Susana Duarte

 metade de mim é silêncio. onde o silêncio habita as margens das veias, habita igualmente o mar tempestuoso  dos meus pensamentos. metade de...