sexta-feira, 29 de novembro de 2024

 metade de mim é silêncio.


onde o silêncio habita as margens

das veias, habita igualmente o mar


tempestuoso 

dos meus pensamentos.


metade de mim é silêncio,

e mais não sei. sei apenas 


da inexistência


dos nomes que não visito,

dos rostos de que apenas

guardo memória,


da solidão que me mora no sangue,


e da metade de mim que é silêncio.


outra metade, são as quimeras,

as viagens que demoram,


e a demora da tua pele. 


metade 

de mim seriam as águas perdidas

e os voos picados 


por sobre as ondas.


metade de mim é silêncio;

metade de mim é o que não sei.


Susana Duarte

2020




terça-feira, 26 de novembro de 2024

 Identidade


são etéreas, as memórias. talvez apenas ilusões, talvez apenas estórias

de abraços desabituados dos corpos.

são névoas, as canções. talvez fossem sorrisos,memórias de abrigos e de corações interrompidos, navegados, ou...mortos.

a morte da memória é o esquecimento,

e o apagamento da sombra das mãos:

aquelas que, outrora, foram tuas, impressas

num ventre oculto, navegadas elas pelo ventre,

demente, talvez. esquecido. doente de 

abandono.

[quem és? quem foste?]


Susana Duarte

2016

segunda-feira, 25 de novembro de 2024

 irrequieta perante o desconforto das lágrimas


(talvez quieta quando me abraças, inquieta

quando me percorres com os dedos 

e me abres caminhos na pele)


sorvo o ar que respiras e páro de nadar

sob o teu peito, suspensa como o ar rarefeito


do que desconheço, e protejo, e calo,

e transbordo, anoiteço e durmo

sem ar e sem sombras e sem luz e sem ti


mas contigo e com luz e com ar e com dia

e com noite e com passos 

e com a caminhada que desconheces

e intuis, e renegas, e entregas ao futuro 


das promessas que fizeste - a ti, a mim, 

aos dias e ao que desejas e não sabes.


irrequieta perante o desconforto, quieta 

diante das certezas, talvez inquieta 

       na amálgama das mãos e dos pés 

e dos braços e das peles e dos corpos


 quando transbordas de dia e de mim:

pele suave de ave perdida, no vôo incerto

            da vida que tens dentro ,

   no afogamento lento das incertezas

e nas vozes situadas num recanto dos braços .


Susana Duarte


domingo, 24 de novembro de 2024

 há um rosto escondido atrás

do meu rosto,

uma flecha inerte


perdida no espaço.


a voz,

a alucinação 

ou a máscara etérea do sorriso 


esgotado.


Susana Duarte

quinta-feira, 21 de novembro de 2024

 o amarelecimento das folhas

é proporcional         ao envelhecimento

dos insuspeitos olhos          de outrora,

luzidios              como as águas.


imersos          nas folhas apodrecidas 

dos lagos dos dias,                 os olhos 

amarelecem       ao ritmo dos outonos

sacrificiais          e dos tristes sorrisos 

convocados                   pelas mágoas.


o amarelecimento                     da vida

é proporcional aos anos       desfeitos 

pela realidade,   e às asas esbatidas 

        

        dos vôos 


                 outrora imensos.


Susana Duarte


sábado, 16 de novembro de 2024

 suspensa nas tuas palavras,

pétala descaída de uma flor iníqua,

resta-me a memória.


és, foste, terias sido, 

o parto feroz,

a corrente avassaladora de uma maré.


suspensa nas memórias das tuas mãos,

sombra flutuante 

de uma margem qualquer,


permaneço. 


permaneci angustiada na espera

de uma qualquer vontade,

tão inglória quanto insignificante


e tão frágil quanto uma gota de orvalho.


as mulheres suspensas nas memórias

são as mesmas que se espelham 

em olhos alheios, 

tão estranhos quanto o miado 

dos gatos, e tão solitárias quanto eles.


Susana Duarte

terça-feira, 12 de novembro de 2024

 enevoada, nublada 

         como as paisagens que percorro,


sobrevoo as ranhuras da mente

    onde revejo os dias anteriores à mágoa. 


sou, como as gotas de chuva, transparente

       e temporária. infiltro-me insegura 

nas  sementes  do que antevi, 

   e escondo da luz a brevidade

                     do que sou. 


Susana Duarte


domingo, 10 de novembro de 2024

 é, então, isto o Amor:


a quieta submissão da vida 

aos braços do Outro de nós,

roteiro das bermas


onde podemos descansar.


é, então, isto: 


a eternidade quieta 

dos momentos de silêncio, o olhar

aquático das noites e o corpo

posto em sossego 


diante da aurora.


é, então, isto o Amor: 


sol primevo dos sorrisos, 

pegada indelével sobre os cílios,

impressão digital do peito

sobre as sombras 


de outrora.


é, então, isto a vida,

seiva segregada na ponta dos dedos,

trevos que te nascem das mãos 

quando, num sorriso, afloras 

a alma antiga 


que carrego dentro.


Susana Duarte 

(Para ti, Pedro)




terça-feira, 22 de outubro de 2024

 abro ao porta ao silêncio

como se as palavras suspensas

fossem âncora, navegação à vista

ou salvação


sabes que não há paredes 

onde impera a solidão dos pássaros


nem cães a ladrar nas ruas


olho a chuva que cai e desnudo 

o silencioso piar de pensamentos ocultos


só a chuva, e o silêncio,


e tu


sabem das estradas que percorri, e da vontade

submersa de voar


Susana Duarte


terça-feira, 1 de outubro de 2024

 chama pelo meu nome, como chamaste 

as aves sem céu, as aves perdidas 

sobre o vôo lento das ondas,

em cada uma das manhãs 

    reclamadas pelo sangue

        dos dias.


chama pelo nome        de todas as auroras

percebidas e, sobre cada uma 

das manhãs antecipadas pela lágrima 

    solar do tédio, constrói os dias 

      

              da redenção. 


oprime as lágrimas, 

apaga as chamas, deseja 

    o nome, e corre por entre as ruas

             da antiga segregação dos corpos. 


sabes onde estou, porque caminhas

    por entre as peles desafiadas

pela conjunção das imagens solitárias

        que nos povoaram             os dedos.  


não mais sós, os dedos multiplicam

      manhãs novas e gritos solares na pele.


Susana Duarte

sexta-feira, 27 de setembro de 2024

 é preciso dizer "amor"

sorvendo a vida de todas as letras.


é preciso afirmar o amor 

nos cílios,

nas pregas de pele dos cotovelos

ou nos recantos escondidos das axilas


vivas 


quando as mãos tocam piano,

tocam os ombros, as espáduas e o ventre.


é preciso dizer "amo-te"

às dúvidas e às expansões que as perguntas 

geram, como se gerassem um filho


no ventre inquieto. 


é preciso afirmar a voz sobre a pele,

a pele sobre a pele,

a pele sobre os olhos 

e os olhos sobre a boca,


dedilhando letras

como quem sopra vida 


na mente irrequieta do corpo amante.


[é na boca que calamos toda a angústia]


Susana Duarte


terça-feira, 24 de setembro de 2024

 trago o silêncio nas veias,

como uma veste antiga


sobre o lado do avesso 

dos ossos.


visto-o,  tão sagrado 

como outra veste qualquer,

como outro corpo qualquer.


espelho os lugares

onde o sangue se demora


e pergunto quem sou.


Susana Duarte

domingo, 22 de setembro de 2024

 sabes onde vivem as aves 

da tua paixão, meu amor,

ou as asas de vigilante da natureza 

com que construíste caminhos

impolutos, verdejantes 


e definidos


como as veias que latejam

ao ritmo do meu peito,

e nele se escondem 


(ou navegam)


nas noites claras em que escreves

palavras ornadas de levante

na minha pele.


é nela que descansas,

e é dela que te ergues célere 

sobre as horas tardias das preocupações,


erguendo sóis 

nos nossos sorrisos cansados

e nas mãos dadas da nossa indefinível 


paixão. 


tens em ti todas as luas

que nos acalentam, todas as ruas

percorridas pelos passos resolutos


de um futuro 

que se inscreve em cada braço 


(tão alado como as aves 

    que te voam nos olhos quando, sereno,

            me devolves o beijo)


Susana Duarte




domingo, 4 de agosto de 2024

Noite

 a noite das aves é segura:

    serena os vôos, 

      abranda os passos

e faz soar as águas onde sapos coaxam


e os minutos se escoam

   por entre os braços e o desejo de ficar.


a noite das aves é delicada:

    abraça o sonho antigo de ser,

       rege a partitura de passos novos

e define a caminhada dos cansaços


e das luas dos corpos. 


as noites são segredos e sussurros

     ensimesmados, onde olhares gritam 

memórias de dias a sós, 


        tão encantatórias quanto o pio 

   que se faz sentir nos braços nús, dançantes 

e próximos do abraço 


       e da nudez de ser noite:

 esta noite transparente e luminosa

como as águas que escorrem dos olhos

         e naufragam na pele das costas. 


Susana Duarte

sábado, 3 de agosto de 2024

 prometo-te um poema de silêncio

e navegação,


uma onda lenta na pele


a saudação leve 

do dedo sobre a boca


e a neve que se desfaz 

sobre as costas


 (outrora desabitadas).


Susana Duarte 🌻

sexta-feira, 19 de julho de 2024

 esperei por ti, 

       como quem  espera              por  um fantasma.


caminhei na noite 

como se as esquinas               me devolvessem 

                           o sorriso de outrora.


esperei pela tua chegada

   -não alcançando senão o dedo esticado

(por mim) a oriente.


não sabia onde moravam os beijos

prometidos, ou                    a sensação latente

da tua chegada.    contigo,  espero pelas mãos,

                                  (as tuas);


pelo toque das  palavras,


e pelos dias da mansidão             clara

                                     das quimeras.


espero        que tragas           contigo

                              a suavidade das maçãs rubras

do desenho dos corpos;


                    a metafísica das águas;


a iluminada crença

na paixão com que delimitas


                    os meus passos, 

                                me constróis as asas

                                          e  alimentas os beijos.


eis-nos a   desfazer

           os espectros        


                e a dar lugar ao vôo largo

                                 de todas as  chegadas.


Susana Duarte


Arte de Julia Margaret Cameron


domingo, 7 de julho de 2024

 já escrevi sede nos lábios,

      na procura da barca da aurora.

já escrevi rochas fendidas

        nas manhãs do corpo.


 

houve madrugadas cessadas

   sobre os ombros nús de noites sem noite.


escrevi sede sobre a pele rarefeita, 

decomposta

       de uma alma insaciável.


hoje, escrevo para ti, por sobre as letras

escritas na pele ávida 

da queda das águas sobre 

         o sal do corpo.


Susana Duarte 


 a palavra 

   és tu, caminhante 

        destes meus passos.


convocas as tempestades 

      para amainar as minhas, 

         sol no meu corpo,

          vento sul na passagem pelos cabelos 


     intrincados 

          com que devoro

    

 o beijo.


o beijo é -as palavras todas-

    e todas as palavras me conduzem 

            a ti:


estás onde as noites terminam

         e as vozes acabam, silêncios 

feitos de luz nova e de auroras tingidas


   de um corpo -amante 

e da beleza invulgar das coisas raras,

onde eu sou eu, e tu és tu,

               todavia raros


        na confluência dos dedos.

Susana Duarte 

7/07/2024




sexta-feira, 28 de junho de 2024

 sinto falta dos teus braços,

onde navego momentos de um tempo 

                     

                             suspenso.


sei onde estás, braços salgados

da procura, e reflicto neles as águas cálidas 

de um ventre nú. és a manhã desassombrada


e o suave descanso dos ombros 

sobre a opressão dos dias. és a criação 

de uma aurora, desenhada a óleo 


sobre os meus olhos

              (onde escondes o sorriso)


eles próprios suspensos, farol e faroleiro 

de uma vontade afogada nos dias de ontem,

talvez de  todos os ontens. reencontro 


   os dias de verão onde suas temores.

              desaguo na foz de um rio novo, e rio.



  Susana Duarte 



 volto a ti como quem volta à raíz 

e segrega seiva adormecida

por onde os braços  

procuram 

afagos 


ou palavras

de amor e de glória,

escondendo-se sob vertentes

outrora úmbrias, agora solares, asas


soltas  da nossa vontade 

de ascender 

ao segredo,


à alquimia de transformar em luz

a antiga obscuridade,

parindo asas

desiguais


onde os olhos descansam.


Susana Duarte 




sábado, 22 de junho de 2024


 Rendição 


foi a flor do teu olhar que me trouxe 

o dia luminoso 

e a manhã do teu beijo.


foi a flor das tuas palavras,

e a sombra dos dias

que me iluminaram os lábios,

devolvendo as asas ao corpo


 no Penedo,


onde retirei as mãos das rochas

e sorri. foi a flor do teu olhar.


sabes dos teus e dos meus dias,

e sabes que a solidão é maior depois 

de enrubescer os lábios.


foi a flor do teu sorriso que me sorriu,

amando-me as trevas e a luz,

as montanhas e os vales


e os abraços outrora sonhados.

foste tu, e és tu, e sou eu


(mãos dadas no Penedo)

     a fazer capitular o medo.


Susana Duarte

21/06/2024



segunda-feira, 1 de abril de 2024

 há uma casa onde a infância foi

a ideia de um dia ser     obra imperfeita talvez

obra acabada             inconsciente dos futuros

ou dos filhos    ou dos gatos sobressaltados

e das dores paridas       em noites solitárias


na casa sobrevoada por memórias, vivem 

espectros            gestos antigos       objectos

obsoletos        almas grandiosas   ou meros 

sobreviventes aspirando o ar das ameixas e

       dos laranjais    e dos sorrisos de avós

tão antigos como as casas e os seus beirais

   chuvosos, resplandecentes e gélidos    onde

gatas antigas parem   gatos futuros  e o gelo

    da manhã pare as dores do mundo


     ou, apenas, as inomináveis: as dos vivos.


Susana Duarte



sábado, 23 de março de 2024

Silêncio

 





o silêncio é tão estranho 

quanto outra coisa qualquer,

e tão desabitado quanto a alma

das mulheres deixadas vivas pelo vento 


tempestuoso


das vontades antigas- as do alento

e da fé, da força e das asas

desabitadas de janelas 


quebradas


pela morte das memórias. 

o silêncio vive nas histórias

que guardo, secretas e risíveis, 

entre as páginas dos livros.


também tu, secreto e risível, 

habitas os dias de ontem,  os que semearam


silêncios

na pele-toda-com que me visto.


Susana Duarte

1o dia de Primavera

 metade de mim é silêncio. onde o silêncio habita as margens das veias, habita igualmente o mar tempestuoso  dos meus pensamentos. metade de...